O ato de criar e consumir arte que toma forma de um jeito tão genuíno, íntimo, denso, mas ao mesmo tempo libertador, pode ser considerado uma cura e, muitas vezes, um ato político. Todas essas características estão presentes no álbum ONÇA, da cantora Alfamor, que compartilhou em entrevista para o Mad Sound detalhes da delicada mas impactante arquitetura de seu primeiro disco.

Ao entrar no mundo manifestado por ONÇA, seus sons e composições parecem nos fazer andar e compartilhar memórias lado a lado com Alfamor, e suas relações de aprendizado com o outro e observações atentas ao cotidiano são transformadas em arte de um jeito um tanto quanto mágico e orgânico. “Primeiramente, amei esse comentário! Acho que você captou uma coisa que é muito íntima minha e me deixa muito feliz em saber que minha música realmente está passando minha verdade. Emoção! ONÇA realmente tem esse movimento e assim ela se fez”, diz a cantora, que também compartilha a linha do tempo sobre sua relação com a música e o mundo. “Eu acredito que estamos aqui nessa dimensão para aprender e, desde muito pequena, fui uma pessoa retraída por uma série de traumas. Ainda estou nesse processo de desconstrução, desaprendizagem, que me leva ser uma pessoa atenta à aprender de outras maneiras, observando, sendo curiosa, vivenciando experiências, ouvindo muito. E a arte foi quem sempre me deu voz! Foi um caminho até eu tomar coragem de ir à frente e soltar a voz, mostrar os sentires que minhas letras expressam. Por isso, comecei a realizar essa magya através das artes visuais.”

“Eu trabalho desde pequena, comecei a desenhar cedo inspirada na minha mãe que copiava desenhos pra as cartas de amor que ela fazia pra mim e minhas irmãs e eu fazia igual. Com 14 eu já pintava camisetas a mão pra vender. Com 16 tive um projeto multiarte somada a uma onda de espiritualidade super aberta, estávamos com esse interesse na época, abrindo nossa percepção de várias maneiras (risos). E fazíamos eventos onde eu expunha meus desenhos e fazia parte da banda como percussionista e nos vocais. Chamava-se Kayab. Acho que nessa época eu entendi que a minha onda era essa, ser uma serva da arte com intenções de despertares. É uma missão ser artista né, em todos os significados possíveis (risos) Mas foi nesse sentir que decidi com 19 ir morar em São Paulo e viver de arte. Fui de malabarista de sinal à ilustradora, fotógrafa, tatuadora, várias funções no audiovisual.. até sair pelo mundo e ficar modo nômade durante quase 4 anos. Muito aprendizado nessas caminhadas! E todos meus caminhos foram abertos através da minha arte. Uma menina que não se reconhecia em quase nada criando suas realidades sendo artista, se desgarrando. Como diz aquele hino [Mistério do Planeta] dos Novos Baianos: ‘jogando meu corpo no mundo, andando por todos os cantos e pela lei natural dos encontros, eu deixo e recebo tanto..’assim sigo, fazendo vida=arte=amor”, compartilha a cantora.

Tantas viagens, caminhadas e paradas de Alfamor que resultaram em aprendizado e arte, foram interrompidas pela pandemia do COVID-19, fazendo a artista, como tantos outros, experienciarem e buscarem inspiração em um país desconhecido para alguns: sua própria casa. “Como já entrei o ano no processo do disco, foi bem maluco. Quebrar todas as expectativas de lançamento, não mais formar minha banda e montar meu show, vish. Nisso eu resolvi entrar num processo de desapego total e sai de São Paulo, visto que nada ia rolar”, ela conta. “Na minha isolação, onde eu realmente me sinto em casa (Salvador) tive muitos momentos de inspiração, tanto de escrita melódica como explorando outros horizontes produzindo música instrumental eletrônica. É uma pira tudo isso que tá acontecendo mas sinto que também abriu uma brecha pra nos explorarmos mais. E nessa, naveguei tanto por inspirações de contato saudoso como de sensações nesse afastamento emergencial.”

Entrando de cabeça nas faixas do disco, um verdadeiro caleidoscópio de temas e pensamentos provocados são oferecidos. Músicas como “Sideral Sinistro” e “Morada” possuem um instrumental tão rico, que aumentou o que pensei que não poderia ficar maior: a saudades dos shows. Conversando sobre isso, Alfamor conta que espetáculos de MãeAna, Mateus Aleluia, sua irmã Ava Rocha e a revolução proporcionada no contexto dos shows que Bob Marley realizou.

Aproveitando a menção de tantos nomes incríveis e influentes na criação de ONÇA, se aprofundar nas mulheres que mais inspiram a obra da cantra, é imprensídivel, ainda mais com seu histórico passando por uma banda batizada como Xanaxou, composta por ela, Camila Costa e MãeAna, presentes na faixa “Sábado Sangue”. “Erykah Badu é um totem transcendental pra mim. Aqui, tenho 5 musas indiscutíveis: Rita [Lee], Baby [do Brasil], Gal [Costa], Elza [Soares] e Elis [Regina]. Mayra Andrade e Solange, também, tudo pra mim. Ava Rocha, Juçara Marçal, Alzira E, Luedji Luna, Linn da Quebrada, Céu.. putz pode ser infinita essa lista minha gente!”, compartilha.

A vida não passa de uma verdadeira história, possuindo começo, meio e fim, e em ONÇA, desde o primeiro som que o disco oferece, um trovão, em “Alfa”, até o agradecimento em “Paô”, terrenos coletivos e privados cultivados pela artista são explorados e oferecidos ao mundo, e nada como a vida, feitos de maneira calculada e sabendo como a história vai terminar. “O trovão abre os caminhos de ONÇA, que é uma filha de Iansã. Ritualiza essa saída dessa mata escura apresentando-se, cantando seu mantra de arte=vida”, ela conta em detalhes. “‘Alfa’ é a origem, o princípio. ‘Babylon’ já vai pra rua e dá o papo reto, quer seu corpo livre. ‘Sideral’ volta pra dentro de si e vai ao cosmos, buscando (auto)conhecimento. ‘Morada’ volta à rua, pensando nos caminhos da vida e lembrando que somos nosso próprio lar onde quer que estejamos. ‘Semente’ é política mas é solar, cheia de esperança de transformação, espelhada em uma mulher (Marielle Franco) que por sua força nos dá força pra seguir. ‘Sábado Sangue’ navega pelo mistério dos ciclos femininos, profunda como uma típica ‘escorpiéli’ (risos). E por fim, ‘Paô’, saudando todas as energias, na alegria erê. Ela é uma canção de permissão e por isso foi a que primeiro lancei como single mas, no disco, finaliza ONÇA celebrando, cheia de sorrisos a ressoar…”

“Início e encerro com as percussões no fronte como se, imageticamente, fossem as batidas do coração que envolvem toda a afetuosidade que compõe e fizeram esse trabalho acontecer”, Alfamor finaliza apenas a conversa, pois seu chamado trazendo o mundo para a arte, e vice-versa, está só começando.

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