“What a strange girl you are… flung out of space”, Cate Blanchett já acusava Rooney Mara no filme Carol, de 2015. A natureza única e impressão diversas vezes tida como extraterrestre de uma conexão, é vinculada com a estranheza, a distorção, mas também com a fascinação. Tal percurso intimista é compartilhado com o público pela técnica de som Alejandra Luciani e Raphael Vaz, o Fefel, do Boogarins, que juntos, convidam o público a acessar e se transformar através de sua parceria musical e de vida.

Um projeto de natureza tão viajante só poderia ter como estopim uma experiência aparentemente sobrenatural: o show do My Bloody Valentine atendido pelo casal no festival Desert Daze, na Califórnia, dias depois do Boogarins se apresentar por lá. “Foi no 14 de outubro de 2018”, Alejandra recorda com todas as letras, em entrevista ao Mad Sound. “Estávamos lá naquele lugar incrível que parece um deserto, mas com morros de pedras e uma lagoa no meio, muito surreal. Ficamos esperando ansiosamente o show perto do palco, e logo vimos o que com certeza foi o show mais alto das nossas vidas. Eles entregaram protetores de ouvido antes dos show começar, menos mal. Mas acho que esse lance da pressão sonora e as projeções muito perfeitas que cobriam o palco cheio de paredes de amplificadores deixaram a gente se sentindo num evento paranormal, fora do espaço e do tempo. No meio do show lembramos de olhar pros lados e ver todo mundo com a mesma cara de bobo sorridente [risos].”

Antes do Desert Daze, Alejandra trouxe mais experiência de outro ponto exótico do Planeta: a Austrália, e não é só através de histórias com aranhas exóticas ou belas praias que as memórias vindas do país são feitas, no caso da artista, ela também envolve proto-punk e o próprio pioneirismo como uma líder mulher de banda. “Grandes emoções naquela época, eu e meus amigos, todos 10 anos mais velhos, tocando juntos. Eles me apresentaram muitos sons que me influenciaram muito musicalmente e que com certeza me levaram até onde estou hoje, e uma das coisas mais importantes é que me apresentaram muitas bandas fodas com mulheres cantando, como The Breeders e Mazzy Star, o que me fez apreciar muito a voz feminina no rock alternativo. Na época não conhecia nenhuma banda legal com mulher cantando e ficava bem frustrada com esse fato, especialmente porque eu era uma mulher cantora e isso deixava uma pressão enorme para mim, foi muito libertador.”

“Além de eles me encorajarem muito, lembro a primeira vez que toquei com eles, a gente se conhecendo e testando, e senti como se eles tivessem ficado muito chocados e felizes com a minha voz”, ela relembra.

A estrada mundialmente psicodélica de Fefel com o Boogarins não poderia ter ficado de fora dos aprendizados e influências presentes no projeto, como ele confirma e ressalta: “Pra começo de conversa, o músico que sou agora (e não estou dizendo que seja grande coisa) é quase todo localizável dentro desses anos de experiência que construímos com o Boogarins desde 2013. Os meninos viraram minha família de estrada e trabalho, e com muito gosto me deixei influenciar por eles e por todas as situações que entramos juntos.”

“Inclusive, foi numa dessas que comprei meu primeiro sintetizador, há uns 5 anos, sem nunca ter tocado um teclado. Ninguém me avacalhou por causa disso e ele virou uma peça importante no nosso som desde então. Lembro de conversar com Benke [Ferraz] sobre a vontade que eu tinha de ter uma banda sem ele”, revela. “[Ele] me olhou chocado e aceitou tudo numa boa, disse que seria bom pra nós dois, que eu fizesse um disco de rock onde a guitarra fosse jogada para segundo plano. Já estávamos no meio da gravação de Carabobina nessa época.”

Como deveria ser, o tempo para o projeto tomar forma na mente e nos instrumentos dos artistas aconteceu de modo natural, como conta Alejandra, sendo uma forma de dois apaixonados pela música passarem tempo juntos sem a pretensão de um dia pensar que aquele material seria lançado, característica nítida no resultado final do disco: o som excepcional do Carabobina não tenta, em nenhum momento, ser, ele apenas é.

“O processo mais engraçado talvez é o da construção das melodias, a gente toma turnos enquanto o outro não está por perto e improvisa melodias vocais por cima, depois ouvimos as duas e escolhemos o que curtimos mais”, ela compartilha, e acrescenta, se auto-intitulando uma “mulher do ProTools“, que muito do processo criativo foi surgindo com seu conhecimendo do DAW (Digital Audio Workstation), além dos instrumentos terem uma participação digna de mudança de personalidade na produçaõ das faixas, como uma DrumBrute da Arturia, o Yamaha Reface DX , e o Moog Sub Phatty, pertentence à Fefel. “Depois de um tempo compondo músicas percebemos que tínhamos muitas músicas legais na mão e que dava até para lançar um disco. Nesse momento focamos em finalizar e fechar todos os arranjos das músicas e partimos para a mixagem”, ela narra.

A permissão do casal para criarem sua própria singularidade sonora também conta com diversas influências como Alejandra observa “Broadcast e Juana Molina, nos inspiraram na produção e na proposta. Mas é claro que durante esses 2 anos muitos sons nos pescaram e pareciam ter influência no que a gente faria”, ela esclarece. “Poderia te dizer que somos fãs dos anos 1990, de bandas como Pixies, Sonic Youth, Lemonheads… E que escutamos muitos discos brasileiros dos anos 1970, como Clube da Esquina e o Jóia… De coisas mais contemporâneas e que vejo eco em nosso som, acho que citaria Animal Collective, Ulrika Spacek e Ava Rocha.”

Seja pelo My Bloody Valentine, nas histórias vindas da Austrália de Alejandra, da eterna viagem em família com Fefel e o Boogarins, ou até os anos 90, a aparente abdução sonora do casal se reflete em cada faixa de Carabobina, possuindo momentos de grande dinâmica com sintetizadores, distorções e um verdadeiro descontrole controlado no rumo da canção, lembrando alguns traços presentes na PC Music, mas alternando com instantes macios e serenamente desconcertantes, recorrendo à certos toques de lo-fi, o projeto vai envolvendo o ouvinte na atmosfera provocada pela dupla, que ganha mais forma e cor do outro lado do contato alcançado.