Quando surgem novos sentimentos, dúvidas em meio ao amadurecimento, traduzir o que está dentro para fora e falar acima da voz da razão requer criatividade e coragem. Quem faz esse árduro exercício com maestria é a paulistana Giovanna Moraes.

Com o sucessor de seu primeiro disco, Àchromatics, de 2018, que a colocou no mapa da cena musical brasileira, o álbum Direto da Gringa reforça a autenticidade experimental da compositora. “O álbum foi um processo de grande descobrimento e amadurecimento para mim”, afirma Moraes em nota para o Mad Sound. “Foi um grande desafio, um pulo pra fora da zona de conforto, mas fiquei bem feliz com o resultado. Tem algo muito interessante de fazer álbuns que eu acho que meio que imortaliza quem o artista é no momento da criação, tem uma energia que fica lá pra sempre.”

“Acho difícil explicar tudo que rolou por trás do processo porque acho difícil no geral sintetizar tudo que eu era naquele momento de criação. Isso sendo dito, refleti muito sobre o acidente, sobra a mudança como o único constante. Sobre ter a coragem de seguir diante de tanta incerteza, o peso que isso trás no viver; mas também na beleza disso, quão improvável e bela a vida é. E a constante transformação que somos. O legal é que gravamos tudo que rolou do processo de produção do disco, então dá pra ver na série bastidores do meu IGTV e YouTube muito dos pensamentos e loucuras por trás do disco”, conta Giovanna.

A artista, que tem como uma das grandes referências Fiona Apple, encontra na cantora inspirações para reforçar sua sonoridade dinâmica, intensa, e díficil de se rotular, além de aprender muito com a composição da lendária artista, “Acho que a Fiona não tem medo das suas palavras, da agressão que o som de duas palavras juntas podem causar no ouvinte, e do release ou resolução que outras podem trazer também. Ela tem uma pegada rítmica na voz que adoro, muitas sutilezas e energia emocional nas músicas dela, eu acho que eu trabalho bem com isso também”, afirma.

Mas Direto da Gringa, Giovanna procurou ter mais ainda como inspirações grandes artistas e compositores brasileiros para a auxiliarem em um desafio: a composição em português, tendo em vista que Àchromatics possui apenas faixas em inglês. “A prosa de Clarice Lispector que eu adoro e acho uma aula de cadência. Muita música brasileira – muita Elis Regina, Marisa Monte, muito do Tropicalismo; Tom Zé, Gil, Caetano – e coisas mais contemporâneos, como BaianaSystem, O Terno… Fui reparando o que as coisas que mais ressonavam comigo tinham em comum. Percebi que muitas músicas brasileiras usam de ditados e expressões populares e brinquei com isso em algumas letras. Percebi também como algumas músicas conseguiam falar de coisas profundas de uma maneira leve e cotidiana, tipo ‘Bola de Cristal’, do BaianaSystem, pelo framing de uma conversa de término de relacionamento, algo de fácil acesso, afinal, quem nunca sofreu por amor? Tentei implementar isso também no disco. Também escutei entrevistas diversas reparando na maneira de falar de pessoas diferentes. Queria que o álbum tivesse várias vozes, não só a minha, então procurei vários conteúdos para ajudar a expandir minha escrita. Me preocupei não só no que ia falar nas letras, mas também no como ia falar. Aquela sensação de, já que vão me entender, melhor fazer valer, né?”

O resultado, nós te convidamos para conferir, mas já adianto que a impressão que dá é que Giovanna compõe em português há anos, quando na verdade, o estudo para o disco foi árduo. Agora, com a experiência, a artista aconselha aqueles que querem se aventurar na composição em português, “No começo para mim foi difícil – nunca tinha escrito em português – e da inexperiência sempre nasce uma insegurança. Além disso admito que até curtia poder me esconder atrás da barreira da língua – tem algo muito íntimo da composição e dava medo saber que agora as pessoas iam entender o que eu estava cantando. Mas a vontade de escrever em português também partia da vontade de ser entendida, de poder me comunicar. Então foi um processo de grande amadurecimento pra mim.  Maior conselho que consigo dar é: seja paciente com seu processo e o simplifique o máximo possível. Você não precisa resolver tudo de uma vez, faz o que consegue. Eu às vezes demoro muito tempo pra escrever letra, desenvolvendo primeiro algumas ideias rítmicas e melódicas e aí depois procurando as palavras, contando sílabas que encaixam dentro da emoção do que quero falar.”

“Depois que passou a insegurança de nunca ter escrito em português achei um flow legal e hoje realmente não faz diferença pra mim em qual língua escrevo. Pra ser sincera eu ando curtindo muito escrever em português – é uma língua de muita oralidade, várias melodias lindas no falar. Estou muito feliz de poder continuar contribuindo com vários sons para a música brasileira”, conta a artista.

O disco começa com uma introdução divertida e peculiar, “Let’s Get Mental” possui sons de rádio e a energia do começo de um espetáculo, fisgando o ouvinte a entrar no mundo de Giovanna, como ela explica, “Sou super fã do álbum como um veículo para contar uma história, ou criar uma experiência pro ouvinte, e como você começa o álbum é tudo! Faz a maior diferença para alinhar as frequências. ‘Let’s Get Mental’ é um áudio que eu mandei pro Thommy [Tannus, produtor musical do disco]. Tenho uma brisa meio de personagens e tava numa fase que fazia ‘áudio aventurinhas’ e mandava pros amigos. Esse foi meu favorito e acho que um bom convite para o álbum: tudo perfeito como se fosse pra ser, a Alice [minha cachorra] bocejando bem depois que falo sobre livre arbítrio (risos). Como se tivesse alguém apresentando o álbum, um Mr. Fingerman ou qualquer outro personagem instigando para que você se permitisse a sair do que é racional e viajar, refletir.”

Um dos maiores destaques do álbum é a faixa “Singularidade”, a atmosfera misteriosa e a reflexão sobre a tecnologia no mundo atual, a canção parece ser uma trilha sonora para se dançar enquanto vemos o mundo como conhecemos acabar. “E [também é] sobre se já não alcançamos a tal singularidade, não só pelas transformações em tecnologia e inteligência artificial desde a virada no milênio, mas também pelo papel que a tecnologia e comunicação tem na nossa vida hoje. Quem passa um dia sem internet ou celular? Ando refletindo cada vez mais sobre isso, nessa época de pandemia. Estamos mais conectados do que nunca, com mais recursos do que nunca, mas também totalmente solitários e perdidos diante tanta informação. A internet já tem impactos enormes em como nós vivemos, se isso é singularidade então ela já chegou. ‘Poucos tem coragem, e as autoridades insistem que o novo ainda não chegou'”, reflete a cantora.

Ver o mundo através da lente dançante e experimental de Giovanna Moraes é uma aventura caótica e colorida, mas certamente imperdível. Confira Direto da Gringa abaixo.