Quando pensamos no fim do mundo, é possível que as imagens sejam fantasias hollywoodianas da destruição de monumentos distantes. Em Logo Ali, porém, Bemti traz uma narrativa inequivocamente brasileira e cheia de alma para enfrentar toda sorte de catástrofes tropicais, sejam do fim ou de recomeço. 

Depois de alçar os primeiros voos fora do Falso Coral com Era Dois (2018), o cantor e compositor mineiro traça arcos líricos profundos e viaja por diferentes paisagens no segundo álbum da carreira solo. “Bom mergulho e me conta o que viu do outro lado”, convida em entrevista ao Mad Sound

Apesar de iniciado antes da pandemia, o disco foi trabalhado à perfeição justamente nesse período de incertezas e impossibilidade de seguir com os shows. O resultado é um álbum atemporal sobre a experiência humana frente ao desconhecido, passando pela solidão, a busca pelo refúgio no afeto e a promessa de seguir caminhando, por mais que o tempo se feche ao longo do caminho. 

Bemti
Bemti. Crédito:: Divulgação/Rafael Sandim

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As participações em cada etapa do processo são um verdadeiro desfile de talentos. Lançado em 29 de setembro pela Natura Musical, o projeto conta com as vozes e composições de Fernanda Takai, Jaloo, Josyara, Roberta Campos, Nina Oliveira, Paulo Santos, Pedro Altério e tantos outros. “Tanto eu, quanto as pessoas envolvidas, a gente tinha certeza que estava entregando um disco muito denso, cheio de camadas, com muitas coisas a serem escutadas, interpretadas”, conta Bemti com justificado orgulho. 

Logo Ali clama por atenção aos mínimos detalhes, a começar pela capa. A foto de Bemti recostado com a viola ao lado é uma “reinvenção expandida” do quadro O Derrubador Brasileiro (1879), de Almeida Júnior, e já começa a sugerir o cenário caipira e apocalíptico do álbum. A arte assinada por Paulo Marcelo Oz é um ponto de partida, mas não revela todas as cenas escondidas nos instrumentos e melodias dos 40 minutos seguintes. 

O título pode até sugerir uma chegada breve, mas a clássica expressão é “traiçoeira”: quando escutar um “é logo ali” de alguma pessoa de Minas Gerais, tenha certeza que o caminho está longe de chegar ao fim. No caso do álbum, resumia bem o sentimento do artista no final de 2019, antes de qualquer pessoa sonhar com o que os meses seguintes reservariam ao mundo. “Era a iminência de uma coisa muito grande que estava para acontecer – infelizmente foi uma muito ruim. Com a pandemia, o disco foi se moldando e se tornou essa jornada que a gente tem que aguentar até chegar a algum lugar, é uma jornada bem difícil”, explica. 

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O álbum se abre com a imagem de uma pessoa subindo uma serra e encontrando uma Folia de Reis no topo, escutando cada elemento conforme se aproxima. Ao dar play em “Canto Cerrado”, a atmosfera do disco se descortina em um convite irresistível ao mergulho visceral pelo anoitecer da vida diante da iminência desta tragédia pressentida, apesar da festa. “É que agora eu canto / E eu não vou chorar sem melodia”, avisa o cantor no refrão. 

Com composições, transições e tracklist milimetricamente planejadas para guiar os sentidos noite adentro nessa conversa poética sobre o próprio coração, Logo Ali não permite descanso no caminhar. Apesar da sequência de verdadeiros “tapas na cara”, termo usado pelo próprio cantor para descrever as letras, as músicas possuem camadas de significados que nem sempre ficam evidentes no primeiro golpe. 

Cada sentimento explorado ressoa em diferentes momentos da vida, partindo do canto sincero de Bemti para encontrar eco no universo: “Livramento” fala do distanciamento de um amor, mas conversa com todo fechamento de ciclo; “Não Tava nos Meus Planos” mexe com a lembrança dolorida do começo da pandemia, mas se encaixa facilmente em outras surpresas da vida. “Teve um trabalho muito pesado de composição para não deixar essas músicas datadas “, comenta sobre os significados para além do contexto de pandemia.

“Catastrópicos!”, single ao lado de Jaloo, é uma canção de sobrevivência na busca por abrigo “no afeto ou na arte”, mas também se revela como uma colorida e dançante ironia. “É uma música sobre refúgio no meio da catástrofe diária que é ser brasileiro, independente da época. Esses signos tropicais e dançantes são quase uma ironia porque ela é uma música sobre a catástrofe de ser brasileiro”, conta.

Outra participação com cara de fan favorite é “Quando o Sol Sumir”, com Fernanda Takai. Com o clipe já gravado, a faixa mostra potencial para apresentar o trabalho de Bemti a outros públicos. O dueto delicado foi inspirado por um amor sublime e pensada como uma “música de casamento” para celebrar um sentimento que resiste ao fim dos tempos. 

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Conforme a primeira parte do disco se encaminha para o encerramento, o sonho do artista de criar um “épico mineiro” já está firmado e em processo de concretização. Formado em Audiovisual, o plano original seria um filme, mas as imagens impressas nas músicas entregam uma criação imersiva na qual a subjetividade de cada pessoa é parte criadora. 

A transição dos momentos de Logo Ali vem com esse “pressentimento do tamanho da Bahia” que permeou o nascimento do projeto, anunciado ao lado da voz intensa de Josyara. Mais uma vez, a importância da imersão na experiência do disco do começo ao fim se faz necessária para apreciação de cada peça desse quebra-cabeça.

A solidão se torna tangível no isolamento de “Habitat”, antecedendo a angústia noturna de “Eu Te Dei Tudo O Que Sou”. “A figura do mar é muito cara para mim, essa coisa do oceano como um monstro. Você está ali, diante do mar,  que é uma coisa que está pronta pra te engolir porque você é um nada”. 

A ironia como método para lidar com a aproximação do apocalipse retorna em “Samba!”, uma verdadeira festa nas horas finais da vida que traz, com direito a um banquete de elementos no arranjo. Depois da dança, a introspecção retorna com “Do Outro Lado (Mantra Tornado Grito)”, uma verdadeira carta ao futuro, até a esperança de “De Tanto Esperar”, com o juramento de “sorrir ao menos um mês pra cada pessoa que me fez chorar um dia”.

Bemti mostra que o futuro depois do caos é mesmo Logo Ali: uma medida de tempo e distância inexata, mas otimista e verdadeira, que nos convida a seguir de cabeça erguida para além da névoa da incerteza. 

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