Com esses tempos díficeis, fica fácil a gente relembrar os bons momentos do passado para melhorar o presente. Quem mais pensou isso foi a cantora britânica Dua Lipa.

O segundo álbum da artista lançado uma semana antes do previsto, devido a vazamentos, saiu na última sexta-feira, 27, e consegue a proeza de tornar o debut da inglesa, de três anos atrás, o ótimo Dua Lipa, recheado de hits inquestionáveis como “New Rules” e “IDGAF”, em um disco um tanto tímido, diante da grandeza de Future Nostalgia.

O destaque começa pelo título. Quem batiza um álbum com um nome desses sem ter certeza que ele seria incrível? O antônimo lembra um possível título de álbum dos discos inicias de Lady Gaga: Private in Public, ou seja, Privado em Público, nome inteligente para uma artista que falava tanto sobre a fama, que batizou os dois primeiros álbuns como The Fame e The Fame Monster. De maneira semelhante, Lipa nos avisa o som que estamos prestes a ouvir: uma busca aos sons do passado, com destaque para inspirações como Madonna, Blondie, Gwen Stefani, OutKast, Moloko, Daft Punk, entre muitos outros, para, desse modo, criar as canções do futuro.

“You want a timeless song? / I wanna change the game”, a primeira frase da faixa-título, que inicia o disco, esclarece: você não está ouvindo um disco de uma cantora pop qualquer que segue as maiores tendências da música sem questionar, trata-se de uma trend-setter. Sim, os anos 80 estavam calmamente fazendo seu retorno, através de álbuns recentes como After Hours, do The Weeknd, ou o último da princesa do pop alternativo, Carly Rae Japsen, Dedicated. 

Mas, como reza a lenda, em todo final de uma velha década, ou começo de uma nova década, um grande álbum pop irá ser lançado para definir o que a indústria irá seguir nos próximos dez anos, assim aconteceu com The Fame (2008), de Lady Gaga, Baby… One More Time (1999), de Britney Spears, e Like A Prayer (1989), de Madonna. Em 2020, Dua Lipa é a escolhida.

Ainda sobre a faixa-título, Dua prossegue: “No matter what you do I’m gonna get it without ya (hey hey) / I know you ain’t used to a female alpha”. A canção divertida e certamente com uma mensagem forte sobre empoderamento, mostra uma artista que não acredita no mito da neutralidade diante de discussões políticas, e, antes de embarcar em uma jornada altamente dançante e com canções para esquecer dos problemas da vida, se posiciona, utilizando de sua voz para promover assuntos vitais, e, com isso, provando seu lugar como uma popstar feita a medida para a nova geração.

Eis que a segunda canção do álbum surge, “Don’t Start Now”, primeiro single do novo projeto de Lipa, está posicionada atualmente em terceiro lugar na Billboard Hot 100, parada de músicas mais importante do mundo, sendo impulsionada por ganhar uma coreografia no app fenômeno do momento, Tik Tok. A canção, dançante do ínicio ao fim, narra a superação de um ex-companheiro que só percebe o valor da pessoa quem abandonou tarde demais.

“Cool”, terceira faixa do álbum, e, a primeira canção do álbum produzida por ninguém menos que Stuart Price, produtor de um dos melhores álbuns pops já criados: Confessions On a Dance Floor de Madonna, talvez seja a canção mais “genérica” do disco, em termos de música pop, no entanto, com os divertidos backing vocals de Tove Lo, e o toque do icônico produtor, a canção sobre os primeiros estágios de um grande amor, se torna uma ótima transição entre a superação de um romance, e a tímida descoberta de um novo.

No entanto, a timidez de um novo amor é transformada em uma imposição poderosa na próxima faixa do disco, provavelmente o momento mais grandioso do álbum, com “Physical”. “Baby, keep on dancing like you ain’t got a choice / So come on / Let’s get physical”, Lipa canta, inflamando qualquer um que esteja ouvindo a se envolver na canção como se a vida de todos dependessem disso. Trata-se de um hino dance que será lembrado por muito tempo.

Em “Levitating”, Stuart Price retorna, e o romance se torna intergalático, em uma canção digna de se cantar com os vidros abertos do carro durante o verão, ou melhor, em uma espaçonave, como Dua descreve na música. Nesse ponto, não há ninguém que esteja ouvindo o álbum que não esteja mais feliz do que antes.

A vulnerabilidade de Lipa aparece em “Pretty Please”, ao perceber que talvez ela esteja se envolvendo demais em uma relação que acabou de começar, precisando do toque de seu amado constantemente. A canção desacelera o ritmo do disco, mas, certamente, não sua qualidade, e continua embalando a narração do álbum sobre os melhores momentos de ir se apaixonando novamente.

Descansados depois da sexta faixa? Dua Lipa espera que sim, pois todo folêgo será necessário para a última aparição de Price no álbum, com “Hallucinate”. O romance chega a ponto de Dua estar tão envolvida a ponto de alucinar, e perder a cabeça nunca soou tão bom quanto nesta faixa, feita com grande influência do house e do pop dos anos 90.

O sample de “Your Woman”, do White Town, e os violinos no começo da oitava canção, “Love Again”, soam com uma emoção semelhante à “Sorry”, de Madonna, emoção esta que narra o renascimento de um coração adormecido por mágoas passadas. Em uma entrevista, Lipa conta que escreveu essa canção, sua favorita no disco, como uma terapia depois de um término, em que se sentia sem esperanças para se apaixonar de novo, no entanto, a canção surgiu como um exercício para lembrá-la que ainda havia luz (e amor) no fim do túnel.


“Break My Heart”, o quarto single do álbum, descreve o medo de cair da montanha depois de ter conseguido chegar no topo e observar a linda vista de lá, ou seja, o receio de que um momento tão bom acabe a qualquer momento. Receio semelhante à faixa “Happy And Sad”, da cantora country pop Kacey Musgraves, por exemplo. A ansiedade, no entanto, não é cantada através de uma balada, e sim, outra canção altamente dançante que se destaca no projeto.

O álbum perde um pouco de identidade sonora nas últimas duas faixas: “Good In Bed”, que narra um relacionamento que só prossegue pela afinidade sexual, é divertida, no entanto, as repetições no refrão (“I know it’s really bad, bad, bad, bad, bad”), tiram um pouco da maturidade sonora presente em todo o projeto.

A canção final, “Boys Will Be Boys”, possui uma letra poderosa, narrando infelizes situações que as mulheres tem que passar durante suas vidas, e explicitando a imaturidade desenvolvida em meninos por não serem educados desde pequenos a respeitarem meninas, o que os impossibilita de se tornarem homens, enquanto as garotas são obrigadas a crescerem mais rápido por essa gama de desafios que enfrentam desde a infância. Dua, em entrevista, tem consciência que essa música não é coesa com a proposta de Future Nostalgia, no entanto, como uma artista ativamente política, ela viu necessidade de possuir uma canção sobre o empoderamento feminino em seu novo álbum.

A viagem simulada em Future Nostalgia, que passa pelo passado, futuro, no Planeta Terra, e também fora dele, formou um álbum perfeito para esquecer os problemas do mundo por alguns instantes, e celebrar o melhor do aqui e agora.