Nesse ponto, você provavelmente já sabe: Fiona Apple está de volta. Depois de oito anos, o disco Fetch The Bolt Cutters está surpreendendo a todos, ganhando notas perfeitas em renomadas e rigorosas publicações de música pelo mundo.

Por mais que esse álbum esteja viajando pelo planeta, se tornando um forte concorrente para o prêmio de Álbum do Ano para os próximos prêmios Grammy, Fetch The Bolt Cutters é um dos discos mais íntimos, introspectivos e intensos dos últimos tempos.

“I’ve waited many years / Every print I left upon the track / Has led me here / And next year, it’ll be clear / This was only leading me to that”, ou seja,  tudo que somos e tudo que acontece conosco está nos levando para o caminho onde deveríamos estar. Essas são as primeiras frases do álbum, na faixa “I Want You To Love Me”, que surgem depois de uma introdução curiosa, divertida, e cheia de personalidade, já mostram o tom de maturidade apresentado por Apple no disco.

Em entrevista, a artista conta que estava praticando muita meditação enquanto produzia a faixa, o que a fez ter muita claridade sobre sua própria vida.

“And I know none of this will matter in the long run / But I know a sound is still a sound around no one”, o trecho que referencia a indagação popular sobre se uma árvore cai em uma floresta sem ninguém por perto, ela ainda fará som. Fiona diz que sim, pois ela ainda causará uma vibração. Do mesmo modo que essa analogia, Apple se coloca como a solitária árvore, e entende que mesmo sozinha, ela terá uma voz de qualquer maneira.

Mesmo essa sendo uma canção inteira dedicada a si mesma e seu desenvolvimento pessoal, a artista diz que ela começou sendo uma canção de amor a alguém que não existia mas, por fim, parece ser um voto de esperança de alguém a aprecia-la por quem ela se tornou depois de tantos altos e baixos. Mas se ninguém estiver disposto a isso, tudo bem, ela ainda ainda existirá.

Apple também canta (ao som de um piano fantástico), sobre momentos chaves em sua vida que contribuíram para sua personalidade, como na segunda faixa, “Shameika”. O título é o nome de uma menina durona da escola da cantora que, um dia, falou para Fiona que ela não precisava tentar ser amiga de meninas que não queriam ser amigas dela. Ela também conta que sofria bullying nessa época, e sua confiança só deixava a situação pior.

Em entrevista, a artista relembra que essa fase de sua vida foi fundamental para que sua relação com outras mulheres fosse horrível por muito tempo.

A faixa-título do álbum, “Fetch The Bolt Cutters”, que significa “corte os alicates”, referencia a uma cena da série de TV The Fall, protagonizada pela icônica Gillian Anderson, de The X-Files, em que a personagem de Anderson pede para a polícia soltar uma garota sendo torturada.

Em paralelo, a canção e o álbum inteiro são sobre isso, sair de quaisquer seja a situação que você não esteja contente, segundo Apple. No caso da cantora, essa situação era sua relação tóxica com a mídia, que ela pensou precisar agradar pra sempre, mas com o tempo, percebeu que não precisava, pois ela [Fiona] existiria de qualquer maneira, já que encontrou sua própria voz, fazendo uma referência não distante a analogia da árvore na primeira canção do disco.

Seria inevitável fazer um disco sobre o desenvolvimento pessoal de uma mulher tão destemida como Fiona Apple, sem ressaltar situações relacionadas ao empoderamento da mulher.

É o caso da divertida “Under The Table”, em que Fiona canta, “Kick me under the table all you want / I won’t shut up, I won’t shut up”, ou seja, me chute debaixo da mesa o quanto quiser, mas não vou me calar. A situação ocorre durante um jantar luxuoso, o qual Apple não gostaria de estar. Ao ouvir um comentário inapropriado, ela retruca, provavelmente estraga a noite de todos, mas não ousa segurar sua voz e sua opinião.

Em “Rack Of His”, particularmente, minha canção favorita do álbum, a emoção e certo arrependimento de Apple são praticamente palpáveis em sua voz, quando ela canta “I gave you pictures and cards on non-holidays/ And it wasn’t because I was bored / I followed you from room to room with no attention / And it wasn’t because I was bored”, e com a garganta arranhando, admite, “It was because was loving you so much / It’s the only reason I gave my time to you”

É impossível não se relacionar com a cantora, revisitando relacionamentos desiquilibrados, em que apenas uma parte estava comprometida com a relação. Além do mais, é uma canção sobre não ter medo de ser uma mulher vulnerável e com sentimentos aparentes, tema frequentemente embutido no incosciente de milhares de mulheres com medo de “assustarem” o companheiro.

Em “Ladies”, palavra que Apple repete diversas vezes no começo e final da canção, em um tom pensativo, como se balassasse a cabeça pensando em todas as situações terríveis e chatas que as mulheres passam.

A artista canta na faixa sobre impedir que homens coloquem mulheres uma contra as outras, mesmo que seja em casos de traições, por exemplo.

Em uma das canções mais poderosas do disco, “For Her”, Apple conta a história de uma mulher que ela conversou à anos atrás, que sobreviveu à abusos sexuais. A cantora escreveu essa música para ela, contando sua história enquanto ela não pode.

Mesmo, segundo a artista, que seja díficil de cantar, ela se arrisca e diz na canção, “You raped me in the same bed your daughter was born in”. Apple diz que a justificativa para usar palavras tão árduas são de que algumas pessoas só vão entender o que aconteceu com você, se você realmente dizer com todas as letras e em voz alta.

Por fim, essa fantástica jornada é encerrada com “On I Go”, canção que Fiona conta ter cantarolado para passar a noite quando foi presa, e, segundo a artista, fala sobre sentimentos que ficam fortes e depois são esquecidos novamente, mostrando o quanto tudo é inconscientente, e estar em paz com essa ideia é ser feliz.

Um final lindo para um disco incrível, mas arrisco dizer que nunca poderia ser perfeito, afinal, olhar para a jornada de um ser humano e, principalmente de Fiona Apple e falar que ela não teve defeitos, seria com certeza um xingamento, e mais do que isso, não seria tão crua e honesta como relatada com maestria nesse projeto.