A experiência de ter um coração partido às vezes pode parecer uma tragédia de cinema. Para Halsey, o término de seu relacionamento de dois anos era refletido fielmente no drama de Romeu + Julieta (1996). Estrelado por Leonardo DiCaprio e dirigido por Baz Luhrmann, o filme se tornou uma verdadeira obsessão para a cantora, que sentia estar vivendo parte das desventuras daquele amor proibido, perigoso e destinado a um triste fim.

A quebra da promessa do “felizes para sempre”, seja no cinema ou na vida real, traz consigo uma arrebatadora onda de desilusão, frustração, raiva, confusão e tristeza. Parece o enredo perfeito para um longa de sucesso ou um clássico da literatura. Ou até mesmo para um álbum.

Das dores desse amor perdido e do conforto encontrado no clássico de Shakespeare, nasceu o conceito do hopeless fountain kingdom (2017), segundo álbum de estúdio feito por Halsey. Depois do grande sucesso de seu disco de estreia, Badlands (2015), havia uma grande expectativa sobre o próximo trabalho da artista, que rapidamente tinha se tornado um dos principais rostos do pop alternativo. Na sequência de seu grande sucesso, porém, Halsey tomou uma decisão ousada e fez uma curva acentuada que a levou em uma direção quase oposta à de seu primeiro álbum. 

Enquanto o Badlands era introspectivo, com toques profundos de nostalgia e melancolia, contando histórias de demônios interiores e paixões adolescentes, o hopeless fountain kingdom se mostrou um álbum quente, com produção explosiva e quase não-convencional, trazendo influências do hip-hop contemporâneo e do R&B. A estética dessa era é inspirada no filme Romeu + Julieta e em cartas de tarô, trazendo um clima de fatalidade e predestinação para esse amor fadado ao fracasso. O álbum é descrito pela própria Halsey como “barroco” e é o menos favorito de grande parte dos fãs – mas cativou completamente àqueles que se apaixonaram por ele.

A estética de ‘Romeu + Julieta’ inspirou os videoclipes da era ‘hopeless fountain kingdom’ e recebeu aprovação e consultoria do próprio Baz Luhrmann. Fotos: Halsey no vídeo de “Now Or Never” e Leonardo DiCaprio em ‘Romeu + Julieta’.

Em 2022, em comemoração aos 5 anos do disco, a cantora lançou uma versão ao vivo completa gravada no espaço Webster Hall e não deixou de mencionar essa diferença de público em um de seus discursos, justificando e criando um lugar de acolhimento para os poucos que consideram esse disco como seu favorito: “Eu percebi que muitas pessoas que amam o hopeless fountain kingdom são pessoas que foram injustiçadas por alguém que elas amavam”, refletiu. E com essas poucas palavras, ela resumiu com clareza o apelo emocional de seu segundo álbum.

As feridas ainda abertas de seu amor interrompido sangram em todas as faixas com um misto de raiva, decepção, arrependimento e não-conformismo. Esses sentimentos são expressados perfeitamente pelos vocais de Halsey, que se encontram mais ásperos e viscerais nesse projeto, vindos de um lugar bem mais profundo e instintivo. hopeless fountain kingdom é um álbum feito de emoções e guiado por elas, enquanto Halsey narra sua jornada entre aceitar o fim de uma relação e trilhar um caminho de autoconhecimento em busca da sua própria identidade e individualidade.

O disco se inicia com a faixa “Prologue”, que é uma narração do prólogo original da peça de Romeu e Julieta. Ao fim da citação, Halsey canta um trecho de “American Woman”, um poema de sua própria autoria que anos mais tarde seria publicado por completo em seu livro de poesia I Would Leave Me If I Could (2020). O trecho serve para ambientar a história do disco em um Estados Unidos muito semelhante à Verona de Shakespeare, um terreno infértil para uma história feliz: “Sou filha de um país orgulhoso e ganancioso por dinheiro / Onde a grama é verde e o sol sempre brilha / As mãos sangrentas têm gosto de mel / Estou achando difícil ir embora”.

A primeira metade do disco é dedicada a contar a história desse amor que, sabemos desde o início, não teve um final feliz. Em “100 Letters”, Halsey relembra comportamentos de teor narcisista por parte de seu parceiro e demonstra grande arrependimento e uma raiva consumidora por ter doado tanto de si para uma relação em que ela não era valorizada. Logo no início, ela mostra que está tentando reencontrar seu valor e aprendendo a impôr limites, dizendo no pré-refrão que não é algo para ser “amanteigado e degustado” nos momentos em que seu ex-parceiro se encontra “entediado”.

Começando o álbum pelo fim do relacionamento, ela segue para “Eyes Closed” ainda bastante frustrada com o modo como foi tratada, mas dessa vez seus questionamentos chegam com uma pontada dolorosa de tristeza e dúvida. “Eu teria dado tudo por você, cuidado de você / Então me diga onde foi que errei”, suplica Halsey com a voz quase chorosa. No refrão, ela admite que ainda tem o antigo amor em seus pensamentos, mas esclarece que está seguindo em frente e tentando se conectar com outras pessoas. 

As faixas seguintes, “Heaven In Hiding” e “Alone”, narram um primeiro encontro com uma nova personagem em sua história. Apesar de ambas serem cantadas por Halsey, as músicas contam a chegada da personagem Rosa, que é representada por Lauren Jauregui, aparecendo mais para o fim do álbum em “Strangers”. Rosa é inspirada na personagem Rosalina, descrita como o primeiro amor de Romeu antes que este conheça Julieta. Para o conceito do hopeless fountain kingdom e de seus videoclipes, Halsey quis inverter os papéis de gênero, assumindo ela mesma o lugar de Romeu (representado pela personagem Luna), enquanto a outra pessoa da relação seria Julieta (representada por Solis). 

Apesar de sua participação, Rosa é uma personagem secundária na narrativa composta por Halsey, e em “Now or Never” ela retoma seu fluxo de pensamentos sobre o relacionamento principal do disco, entregando um ultimato para a pessoa amada. Na faixa, ela lista todas as incoerências e aparentes indecisões de seu parceiro e, mesmo que ele não pareça valorizá-la da maneira devida, oferece uma última chance para que ele a ame “agora ou nunca”. Em seguida, a delicada e sensível “Sorry” é um pedido de desculpas para todas as pessoas que a própria Halsey acredita não ter tratado da forma devida em seus relacionamentos. Dentro do conceito do álbum, ela pode ser interpretada como um desabafo para a personagem Rosa, que não recebe a atenção e o afeto merecidos porque Luna ainda se encontra muito focada em sua relação com Solis.

A segunda metade do álbum traz consigo um aspecto de maior clareza e foca mais na busca de Halsey por ela mesma após essa grande desilusão amorosa. Em entrevista ao Zach Sang Show, a cantora falou sobre a sensação de não saber quem ela era agora que não estava mais sendo percebida por outro alguém e não baseava mais suas decisões em como agradar essa outra pessoa. Enquanto “Lie” ainda traz muito da raiva e do não-conformismo do fim dessa relação, “Walls Could Talk” fala sobre a natureza vai-e-vem dessa dinâmica indecisa entre os dois.

Já em “Bad At Love”, Halsey está refletindo sobre relações passadas que acabaram mal e chega à conclusão libertadora de que “Sou ruim no amor, mas você não pode me culpar por tentar”. A faixa tem um clima de verão e brisa marítima, e é a primeira no disco que traz um grande sentimento de diversão e a leveza da aceitação de seus próprios defeitos. Em entrevista, a cantora disse que queria que a música soasse como “Leonardo DiCaprio vestindo uma camisa havaiana, pegando a estrada com seus amigos em um conversível amarelo com a capota abaixada, como em Miami Vice.”

Muito desse clima praiano é passado para a faixa seguinte, “Don’t Play”, onde Halsey começa a entender que esse realmente é o fim e passa a colocar a si mesma e seus planos em primeiro lugar. É o tipo de melhora induzida pela raiva, quando o foco passa a ser voltado para as coisas do cotidiano como forma de tentar sair do ciclo vicioso de tristeza e frustração. “Estou seguindo em frente / Estou ganhando dinheiro / Estou na minha / Tenho meu espaço pra lidar com isso”, enumera a cantora depois de listar uma série de luxos e atitudes esbanjadoras e extravagantes, mencionando viagens para Taiwan e uso recreativo de drogas e álcool em St. Tropez.

“Strangers” bota um ponto final na relação de Luna e Rosa em um dueto com Lauren Jauregui. Durante a música, ambas as cantoras mostram sua perspectiva sobre como a relação entre ambas esfriou devido a uma indisponibilidade emocional de pelo menos uma das partes, e a realização de que elas não são amantes, mas sim duas estranhas “com a mesma fome de serem tocadas, amadas e sentir alguma coisa”. Para Luna, isso representa o fim de mais uma parte do ciclo não-saudável que se iniciou com o término de sua primeira relação.

“Angel on Fire” e “Devil In Me” representam duas faces da mesma moeda de autoconhecimento e a busca desesperada de Halsey pela recuperação de sua própria identidade e sua própria autoestima. Em “Angel on Fire”, ela reflete sobre sua ansiedade social ao mesmo tempo em que se desespera com o fato de que as pessoas ao seu redor não parecem notar que ela está “desaparecendo” e tendo sua personalidade consumida por uma situação que a rouba dela mesma. “Estou parada em frente às cinzas de quem eu costumava ser”, lamenta com agonia e pesar.

Depois de se perder, “Devil In Me” é o primeiro passo de Halsey na tentativa de se reencontrar. Aqui, ela parece perceber com mais clareza as manobras que seu ex-parceiro fazia para diminuir sua personalidade. Dessa vez, há mais dor em sua voz do que raiva – uma triste realização de ter se doado para alguém que era nocivo. “Eu não vou levar ninguém comigo se eu rastejar hoje / Mas eu ainda decepciono a todos quando mudo de tamanho / E eu me encolhi tentando chegar à sua altura / Mas eu ‘grito alto demais’ quando dou minha opinião”, fala de forma assertiva. Ela prossegue então para acordar o “demônio” dentro de si – essa criatura que é vista como uma ameaça e um perigo, mas na verdade é apenas sua verdadeira essência.

“Hopeless” encerra o álbum de forma reflexiva e com uma profunda nota de tristeza, sendo uma faixa extremamente vulnerável sobre os sentimentos de Halsey. Ela fala de forma sentida sobre a dor de ser negligenciada em múltiplas situações, mas admite com ainda mais tristeza que ainda nutre uma esperança impossível para essa relação. O álbum se conclui com a frase “I hope hopeless changes over time” repetida várias vezes, quase como uma oração e uma súplica. A tradução mais aproximada fala sobre ela esperar que essa situação “sem solução” mude com o passar do tempo.

Cinco anos depois da chegada do hopeless fountain kingdom, o público sabe que esse relacionamento em particular não voltou para Halsey, mas a artista se encontra atualmente em um lugar muito melhor do que esse reino de desesperança em que se encontrava em meados de 2017. Mesmo com o passar do tempo, porém, seu segundo disco de estreia ainda se mostra um lugar seguro e frutífero para aqueles que sofreram alguma desilusão e ainda não sabem bem como lidar com ela ou o que sentir.

Em hopeless fountain kingdom, Halsey nos mostra que é importante sentir toda a raiva e frustração necessárias, que extravasar os próprios sentimentos é essencial e libertador, e que todas as próprias incoerências e indecisões em situações de dependência emocional são parte do processo e não falhas de caráter. E, o mais importante: que todos os lugares e momentos que parecem desesperadores e eternamente cíclicos também são passageiros.

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