A voz inconfundível de Céu evoca um lugar de conforto e segurança. Seja na “Malemolência” de um menino bonito ou na psicodelia noturna de Tropix, a cantora e compositora é uma das estrelas que mais brilham na música nacional há mais de uma década, mas não se deixe enganar: ainda há muito para descobrir sobre quem ela é enquanto artista. 

Com cinco álbuns de estúdio e reconhecimento internacional do Grammy, foi a incapacidade de escrever novas canções diante da sombra tenebrosa da pandemia que a lembrou do desejo original de ser apenas intérprete para o novo álbum.  Lançado em 12 de novembro, Um Gosto de Sol é uma deliciosa redescoberta do que faz Céu ser tanta abundância. 

É um álbum cuja jornada é tão significativa para o conceito central de esperança quanto o momento no qual é lançado, pois busca fôlego e esperança para o amanhã olhando para dentro, evocando as emoções de quando uma Maria do Céu de 17 anos se aventurou pelos Estados Unidos para buscar uma oportunidade de realizar o desejo de seguir carreira como cantora. 

Lá, a filha de artistas cursava música e colecionava empregos para se manter na cidade de Nova Iorque, de faxineira a garçonete, e descobriu que podia também escrever as próprias canções. “Me distanciando do Brasil que eu entendi o jeito que eu queria compor as coisas do Brasil”, contou em coletiva de imprensa acompanhada pelo Mad Sound

Ela tocava em barzinhos e começava a criar uma rede de contatos interessantes, mas a pátria a chamava para iniciar uma prolífica carreira por aqui, misturando os sons e sentimentos de jazz e MPB, samba e R&B. “No entanto, eu tinha muito em mente que eu queria vir pro Brasil fazer um disco de brasileira. Então lá foi um estopim, aquele fósforo que se acendeu”, explicou.

Os acontecimentos entre o lançamento de CéU (2005) e APKÁ (2019) conquistaram o país e transbordaram para o mundo inteiro, rendendo reconhecimento da crítica e academia musical com indicações e vitórias nas principais premiações do ramo, com indicações ao Grammy Awards – tanto no Latino, quanto no internacional.

“A música sempre foi um lugar de maior segurança pra mim, é o lugar onde me sinto segura, é a linguagem que me acalma e me aquece. Então nesse momento de violência, de óbito e de luto sem precedentes que todos nós vivemos, acabei recorrendo ao meu lugar de segurança e desejo de escutar som, de me manter ativa e aquecida”, explica a artista sobre os caminhos até Um Gosto de Sol. 

Guiado pelo violão de Andreas Kisser, do Sepultura, o disco de versões funciona como uma cápsula do tempo repleta de memórias afetivas, desnudando camadas da construção artística da cantora em uma verdadeira “colcha de retalhos”, como ela explica, com nuances e cores até então não imaginadas até pelo público fiel: Céu é reconhecida facilmente como “filha do tropicalismo” e admiradora do samba, mas paixões como Fionna Apple nem sempre foram abordadas. 

Nesse processo de traçar uma linha do tempo do universo de sons que a inspiram, ela contou com auxílio do marido, o produtor Pupillo, e o pai Edgard Poças. O jornalista Marcos Preto “se meteu” na família para sugerir outras escolhas do repertório: algumas eram fáceis e inquestionáveis, como “Chega Mais”, de Rita Lee, enquanto a versão surpreendente de “Deixa Acontecer”, sucesso com o Grupo Revelação, precisou de certa teimosia até chegar no disco em parceria com Emicida. “Foi insistência da Céu, ela queria e a gente fingia que não era com a gente. Achávamos que não ia dar certo, (…) chegou um momento que foi e ficou bom”, comentou Preto na coletiva. 

Cada versão passa pelo olhar único de Céu sem perder total conexão com os artistas homenageados, a começar pelos sambas que abre o disco com “Ao Romper da Aurora” e “Teimosa”. A escolha dessas músicas explica o fio condutor das canções selecionadas para esse trabalho tão especial. “Talvez, ouvir canções antigas que trazem esperança e nos faça lembrar que isso é cíclico, sabe? Que a gente passa essas coisas e que o universo é tão generoso que dá a chance da gente tentar melhorar. Significa que a gente talvez a gente possa repensar e fazer uma uma construção nova”, refletiu. “Não deixa de ser um elo, uma ponte com aquele momento e a gente pode trazer pra hoje e retomar esse aprendizado. E quem sabe construir agora a partir dessa vivência terrível uma nova aurora”. 

A chegada de Um Gosto de Sol em um momento de vislumbre de novos carnavais alegres e quentes foi uma obra “coincidência feliz” do destino que torna esse álbum ainda mais cheio de esperança. De muitas formas, a ótica de Céu enquanto intérprete abraça as dores de um mundo inteiro que anseia por amor e reconexão em um projeto delicado e intimista, capaz de ressoar também no coletivo, alegrando como o sol tímido das manhãs e a promessa de belezas e novas descobertas pela frente.

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