Sentir demais pode ser uma característica de concepção polarizadora: bênção ou maldição? Habilidade ou defeito?

Para o mineiro Siso, em seu mais recente disco homônimo, o traço se torna mais do que um divisor de opiniões, e sim, uma vital protagonista para expressar de maneira fiel e corajosa a vulnerabilidade e garra de corações machucados pelo amor romântico e até pela opressão política de um país: tudo isso sem perder o ritmo dos passos na pista de dança – confira abaixo a conversa que o Mad Sound teve com o artista sobre o lançamento.

Mad Sound: “Pop Antigo” e muitas das músicas do disco me soam e também me fazem sentir uma espécie de nostalgia dançante melodramática semelhante à experiência que, particularmente, tenho ouvindo as músicas da Robyn. Como foi o processo de entrar em contato com suas emoções e expectativas e entender que elas se expressariam bem através dessa batida oitentista contagiante? 

Siso: Compor pra mim tem muito dessa coisa de processar as estranhezas do mundo, de entender como é que eu funciono no encaixe ou desencaixe com o outro e com o todo. E não só eu, mas também outros indivíduos no meio disso tudo. Lembro sempre de uma frase do David Bowie: “Lembre-se que o motivo pelo qual você começou a fazer arte é que havia algo em você que você sentiu que, se manifestasse de alguma maneira, entenderia mais sobre si e sobre como você coexiste com o resto da sociedade”.

A coisa da sonoridade dançante é algo que gosto muito e me sinto super confortável fazendo. Tenho um especial apreço por canções que tenham esse quê de agridoce, de lágrima na pista de dança. Canções que tenham, dentro daquele centro de euforia e prazer, algo de uma certa melancolia, e que assim a gente tenha um vislumbre de que a vida é esférica, não plana. Que tudo tá contido em tudo, tudo é atravessado por tudo e tudo passa, tanto a dor quanto a euforia.

MS: Da onde e como surgiu a inspiração por trás da estética visual do disco? 

Surgiu de conversas com o Cacau Francisco, um dos diretores de arte do álbum. Quando apresentei o trabalho musical para ele e o Anuro Anuro, ele logo me devolveu uma ideia que veio de uma inspiração numa visita a Portugal antes da pandemia. Ele esteve em alguns lugares que trabalhavam com porcelanas quebradas, tanto com os cacos soltos em instalações quanto transformando-os em outros objetos. Isso tinha a ver com a narrativa do disco, de pegar os cacos de si e colar de volta. Utilizamos um padrão de pintura de porcelanas que é de Minas Gerais, o que já faz uma conexão com o lugar de onde eu venho – e também Fábio Lamounier e Rodrigo Ladeira, do Doma02, que fizeram as fotografias e vídeos. Também tem uma outra ideia que propus e se mistura com isso, que é a do kintsugi, a tradição japonesa de colar porcelanas quebradas com uma liga de ouro, lembrando e honrando o quebrado – até por isso o dourado que aparece na maquiagem feita pela Amanda Pris.

MS: Como a pandemia e a maneira isolada da gravação mudou os rumos do seu espaço mental e criativo para idealizar o álbum? 

S: Mudou completamente. Minha intenção original não era produzir o disco praticamente sozinho em casa, como acabou sendo. Toda a ideia do disco surgiu depois que visitei um estúdio em Belo Horizonte chamado Galeria Resistor, que é o QG dos meus amigos da banda Paralaxe. Fiquei impressionado com o lugar, o clima, os equipamentos, e disse para o Fred HC (que é do Paralaxe e também um dos autores de “Corpo Pra Amar”), “Fred, vamo gravar um disco aqui?”. Ele topou e o disco começou a se fazer imediatamente – vários fragmentos de canções e ideias de gaveta começaram a tomar forma e unidade quase que sozinhos. Estava tudo certo para gravarmos o disco lá em abril, co-produzido por eles. Mas veio a pandemia e já tava tudo tão em ebulição dentro de mim que resolvi gravar em casa, em São Paulo, com o que eu tivesse à mão e alguns equipamentos cedidos por amigos que moram perto. Em um mês a gravação estava pronta – só algumas coisas foram contribuições remotas, como a voz da Julia Branco em “A Onda” (que ela gravou no celular dela) e alguns synths do Fábio Lamounier e do Luccones Nascimento.

MS: Muitas das composições do disco são bem intensas, como é o seu processo de composição, e como foi para este disco, em específico?

S: Eu recolho ideias o tempo todo. Anoto coisas, frases, sensações, conceitos e também gravo fragmentos aleatórios de música que vou criando. Acordes de violão e piano, coisas cantaroladas. Por vezes, sento ao computador e me dedico a criar alguma ideia musical do zero. A sensação da música que surge é que vai me informando o que vai ser o assunto da letra. Às vezes tem alguma ideia que é reação instantânea, surge e fica pronta de uma vez, como foi o caso de “Não Me Venha Com Essa de Amor”, “Boas Maneiras” e “10 Mil Pedaços”. Mas também tem canções que levam meses e até anos pra ficarem prontas, porque o assunto delas ainda precisa ser vivido ou algum pensamento precisa ser elaborado melhor. Com as parcerias funciona de diferentes maneiras. “Corpo Pra Amar” surgiu de uma ideia musical do Fred HC que desenvolvi com Desirée Marantes e Suelen Calonga, e depois fiz a letra. “Our Time” é letra minha em cima de uma ideia musical do Luccones Nascimento, e “A Onda” é uma letra da Julia Branco sobre uma ideia musical minha – a única contribuição que fiz na letra foi no refrão, a parte “e se a onda te levar, lembra que você é a onda”. Essas duas últimas foram inteiramente feitas à distância, por e-mail.

MS: A faixa de encerramento “Depois do Fim da Guerra” é curta, mas ressoa com muita beleza o final do disco. Seguindo o tema e o título da canção, o que você considera que mais mudou e amadureceu como artista e pessoa depois de gravar e lançar Siso?

S: É bem um contraponto temático ao Saturno Casa 4, álbum que veio antes dele, em 2017. O primeiro era bem uma coisa apontando a dor que o mundo causa ao indivíduo e que rompe com as expectativas da pessoa. Já esse é bem mais sobre a dor que o indivíduo causa a si mesmo por causa do mundo e o que acontece quando ele escolhe não mais sofrer por essas coisas. É um aprendizado importante, o de tomar plena responsabilidade por todas as frentes da vida, limpar as interferências do meio em que se vive e seguir em frente com mais leveza.

MS: O disco ainda está mais do que fresco, e em conjunturas apocalípticas, essa pergunta pode ser um pouco agridoce, mas: o que vem em seguida para o Siso? 

S: 2021 vai ser trabalhar mais esse disco – quero fazer mais clipes e me apresentar ao vivo dentro das possibilidades de segurança, virtualmente ou não (esperamos que a vacina resolva essa parte logo). Quero colaborar com mais artistas e tenho uma pequena ideia do que deve ser o próximo projeto, mas o tempo é que vai dizer se é isso mesmo.

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