O maior sonho da vida de Halsey sempre foi ser mãe. Em entrevista para a Rolling Stone em 2016, aos 21 anos, a artista afirmou que queria ser mãe “mais do que queria ser uma estrela pop”, mas a tragédia não permitiu que ela tivesse os dois ao mesmo tempo. No ano anterior, poucos meses antes de lançar seu primeiro álbum, Badlands, a cantora descobriu que estava grávida e sofreu um aborto espontâneo poucas horas antes de subir ao palco na cidade de Chicago, para o que ela define como “a performance mais furiosa” de sua vida. O momento crucial marcaria para sempre a divisão entre o fim da vida anônima de Ashley Frangipane e o início de sua trajetória como Halsey.

Seis anos depois, em seu quarto álbum de estúdio, If I Can’t Have Love, I Want Power, a artista revisita o dilema de precisar escolher entre o amor e o poder, insinuando que precisou abrir mão do primeiro em nome de uma vida buscando o segundo.  O peso de suas escolhas e a batalha para manter a esperança de ser mãe em meio a um quadro clínico de endometriose foram temas abordados em suas músicas “Ashley” e “More”, do álbum Manic (2020), mas em 2021 o outro lado da moeda decidiu sorrir para Halsey e ela deu à luz seu primeiro filho, Ender Ridley Aydin, fruto da relação com seu atual namorado, Alev Aydin. Durante a gravidez, deparada com a possibilidade de finalmente ter amor e poder, Halsey se viu encarando um novo dilema: seria de fato possível ter os dois?

If I Can’t Have Love, I Want Power é um álbum conceitual que disseca o conceito freudiano do complexo “Madonna-prostituta”, uma dicotomia encontrada no olhar patriarcal que divide as mulheres em duas categorias perante o julgamento dos homens: a da mãe e esposa, alguém para ser amada e respeitada (como a figura da Virgem Maria), e a da amante e prostituta, alguém por quem eles sentem desejo sexual, mas consideram um ser degradante (como Maria Madalena). Nesse espectro, um homem não seria capaz de sentir desejo pela mulher que é mãe e esposa, já que essa se tornaria um ser quase imaculado e sagrado a seus olhos. Ele buscaria prazer então na figura da “prostituta”, com quem mantém relações sexuais, mas ao mesmo tempo despreza e sente nojo. Essa ideia é representada com genialidade na capa do álbum, onde Halsey aparece sentada em um trono com uma criança no colo e um seio à mostra – uma imagem desafiadora que simboliza tanto a pureza da amamentação quanto a erotização da nudez, retratando o corpo feminino como um espaço onde as duas coisas podem “coexistir pacificamente e poderosamente”.

Durante a narrativa de seu álbum, Halsey traça uma imagem desafiadora da perspectiva masculina em relação à mulher e seu lugar na sociedade, começando pela agourenta faixa de abertura, “The Tradition” – uma peça guiada pelo piano que faz menção ao abuso e à exploração sexual, referindo-se à “tradição” cultural em que homens exploram e objetificam mulheres e “pedem perdão, mas nunca permissão”. Para ambientar essa ideia, a narrativa fala de duas personagens aparentemente distintas: uma prostituta que é comprada e devolvida por diversos homens e uma noiva vendida em casamento para um homem rico que lhe proporcionaria a vida dos seus sonhos. Ambas as personagens choram continuamente de tristeza, simbolizando que a “mulher prostituta” e a “mulher esposa” são diferentes em seus papéis, mas iguais em sua infelicidade e desfavorecidas igualmente perante o olhar e o poder masculinos.

“The Tradition” se entrelaça com a faixa seguinte, “Bells In Santa Fe”, que traz os primeiros indícios da produção industrial de Trent Reznor e Atticus Ross, com sua instrumentação eletrônica criando uma atmosfera de suspense e tensão que irá estourar na faixa seguinte, enquanto Halsey garante que a história das mulheres “não é um final feliz”. Aqui, a imagem da prostituta serve como uma representação da vida sexualmente ativa de uma mulher descomprometida. Enquanto a personagem em questão busca migalhas de afeto e atenção nos homens com quem se relaciona sexualmente, ela também enfrenta o apagamento da própria identidade, como é ilustrado pelo verso de abertura “não me chame pelo meu nome”, caindo assim apenas no espectro de “vagabunda”.

Aos poucos, Halsey vai encontrando sua própria liberdade e autonomia sexual, como retrata com diversão na eletrônica e dançante “Girl is a Gun”, mas também brinca com o conceito freudiano de que os homens sentem repulsa pela mulher sexualmente experiente, mesmo que estas sejam o objeto de seu desejo. Essa ideia é ilustrada na provocante “Lilith”, guiada pelo baixo e a bateria em um ritmo de blues, onde Halsey se apresenta como uma mulher vista como “repugnante” e “corrompida” por conta de seus desejos sexuais. A figura mitológica se refere à primeira mulher de Adão, Lilith, que ao contrário de Eva, não teria aceitado ser submissa aos desejos do marido. Se Eva representa a figura da esposa, Lilith seria a mulher subversiva, indigna dos sagrados laços do matrimônio.

O público que esperava um álbum de rock sustentado por grandes riffs de guitarra e as power chords usadas no punk rock e no grunge pode se surpreender com as distorções eletrônicas encontradas no rock industrial de If I Can’t Have Love, I Want Power. Marca registrada do Nine Inch Nails, a técnica mistura os elementos digitais com instrumentos orgânicos em camadas entrelaçadas com a voz de Halsey, que demonstra controle e serenidade em seus vocais, diferente da agressividade com que seu timbre rouco geralmente rasga suas faixas de pop. Com a mixagem habilidosa do duo, o desenvolvimento de cada canção se torna imprevisível e surpreendente, criando o álbum alternativo que a cantora sempre sonhou em lançar.

Entretanto, o disco ainda guarda alguns espaços que permitem um verdadeiro bate-cabeça, como a raivosa “Easier Than Lying”, que traz em seu refrão o arranhado das guitarras acompanhando os vocais quase punk de Halsey, enquanto ela apresenta a perspectiva inquietante de que as mulheres são o que a visão da sociedade faz delas, e portanto existe poder em se tornar disruptiva. A canção é apresentada antes de “Lilith” e traz uma ácida crítica à visão religiosa da mulher sexualmente ativa como degradante, onde Halsey rebate que se ela é odiada por essas pessoas, elas devem “odiar ao Criador porque eu fui feita à sua imagem”. 

O rock de garagem dá as caras na faixa mais representativa do álbum, a reflexiva “You asked for this”, que introduz o tema da maternidade e da união estável pela primeira vez. Nela, Halsey se questiona se terá que desistir de sua individualidade e de uma vida de diversão em troca de uma rotina de dona de casa, em um cenário tipicamente americano com “limonada em copos de vidro / cercas brancas e impostos pagos”. Mesmo sabendo que “pediu por isso”, ela se pergunta como pode manter todas as coisas que deseja, mesmo que estas pareçam mutuamente exclusivas.

Em seguida, ela faz uma serenata para seu futuro filho em “Darling”, que recebe o dedilhado impecável de Lindsey Buckingham, do Fleetwood Mac, no violão, enquanto a cantora apresenta seus dilemas e preocupações em relação à mortalidade, agora que a vida de outro ser humano depende da existência dela. O tema tem continuidade na sombria “1121”, que marca a data em que Halsey descobriu que estava grávida (21 de novembro). Sob as notas angustiantes do piano, a cantora faz um apelo quase desesperado à criança em seu ventre durante a ponte, implorando “por favor, não vá embora / não me deixe no formato em que você me deixou”, fazendo referência à sua primeira experiência com o aborto.

Outros elementos do rock podem ser encontrados na segunda metade do disco, que abre espaço para uma única faixa de pop punk, a refrescante e juvenil “honey”, que traz Dave Grohl na bateria e fala de um romance eletrizante de Halsey com outra mulher. Mais adiante, a pesada “The Lighthouse” narra um conto místico de terror sobre uma sereia que devora homens malignos, acenando mais uma vez para a figura da mulher-demônio, e traz a única aparição da voz de Trent Reznor em todo o álbum.

Apresentando sua faixa mais pop do disco e uma favorita dos fãs, na empoderadora “I am not a woman, I’m a god” Halsey assume o controle sobre os pensamentos intrusivos que relatou na inquietante “Whispers” e encerra o álbum com uma declaração de amor para seu filho e seu parceiro na doce e melancólica “Ya’aburnee”, que ilustra a poderosa ideia de escolher a pessoa que vai te enterrar um dia, como símbolo da força dessa união.

Ao fim do álbum, é possível deduzir que Halsey ainda não sabe se será capaz de manter em suas mãos ambos, o amor e o poder, visto que ambos parecem existir em contextos opostos e contraditórios. A batalha constante para não ser classificada como um dos dois estereótipos de “mãe” ou “vagabunda” parece uma luta fadada ao fracasso, mesmo quando ela está disposta a aceitar que as duas partes de si podem coexistir.

A ideia é retratada no thriller que Halsey lançou em IMAX para acompanhar seu disco. O filme If I Can’t Have Love, I Want Power acompanha as desventuras da rainha Lila, uma mulher que buscou o poder ao notar que não receberia amor e teve o direito a ambos negado, independente de sua posição social ou da falsa sensação de segurança que o dinheiro e o prestígio lhe traziam.

Em seu cerne, o filme retrata o “labirinto social do parto e da sexualidade”, conectando-se ao álbum por um conceito em comum: a ideia de que a identidade, a liberdade e a vida das mulheres não pertence a elas, mas se encontra constantemente sob a vigilância e o julgamento dos moldes patriarcais e as tradições culturais. Em sua busca por integridade, Halsey deixa em If I Can’t Have Love, I Want Power um manifesto que trilha a linha tênue entre a busca por autonomia e a ilusão de controle, ilustrando o amor e o poder como duas faces de uma moeda que nunca para de girar.

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