Em 17 de janeiro de 2020, Halsey lançava seu terceiro disco de estúdio, Manic. O nome do álbum faz referência ao transtorno bipolar, um transtorno de humor marcado por duas fases cíclicas predominantes: a fase maníaca, caracterizada por picos de energia, criatividade e atividade intensa, e a fase depressiva, que traz momentos de baixa energia, tristeza e introspecção.

Ao longo de sua carreira, Halsey tem falado abertamente sobre sua experiência com o transtorno bipolar e buscado levar informações à sua base leal de fãs, seja através de seu perfil no Twitter ou em sua matéria de capa para a Rolling Stone. Em entrevista à Billboard, ela conta que recebeu o diagnóstico de bipolaridade aos 17 anos, quando passou algumas semanas de seu último ano escolar internada em uma clínica psiquiátrica após uma tentativa de suicídio.

Não muito tempo depois, Ashley Frangipane – uma adolescente que tinha conquistado um número sólido de seguidores através de postagens no Tumblr com poemas autorais, letras de música e seu amor por One Direction – viria a se tornar Halsey, uma estrela em ascensão da cena alternativa que alcançaria o estrelato logo após o sucesso meteórico de seu álbum de estreia, Badlands.

Anos depois, à beira dos 25 anos de idade, a cantora reflete em conversa com o apresentador Zane Lowe sobre todos os aspectos de si mesma que não teve tempo de processar por estar exposta ao olhar público desde muito jovem e tentando manter uma carreira que já começou de forma estrondosa. Mais madura e agora com seu nome consolidado na indústria musical, Halsey decidiu abordar essas questões no Manic, um disco que ela considera “um estudo de todas as emoções e perspectivas diferentes” pelas quais passou no processo de criar esse projeto.

A importância da terapia e da disseminação de maiores informações sobre o transtorno bipolar levaram Halsey a ter uma conversa com a psicóloga Snehi Kapur, que foi divulgada em seu canal do YouTube para complementar o lançamento do Manic. Nela, a cantora desabafa sobre sua rotina enquanto pessoa pública com um diagnóstico de bipolaridade e como o tema é abordado pela mídia quando se trata de um artista ou pessoa renomada.

“Às vezes eu sinto que a mídia celebra muito os transtornos mentais quando ela está ‘ganhando algo’ com isso, como a arte que nós fazemos, por exemplo,” reflete Halsey. “Mas se [esse transtorno] tira algo deles – se eu não consigo fazer um show ou aparecer em algum evento – isso vira uma arma. O jeito que eles podem roubar sua narrativa depois de você ter escolhido compartilhá-la é uma das partes mais aterrorizantes.”

Ao trabalhar em seu terceiro álbum de estúdio, Halsey recupera a autonomia sobre sua própria história e jornada com a saúde mental. Apesar de não ser um disco que fala explicitamente sobre bipolaridade, Manic é construído para representar o tema de forma subjetiva e multisensorial. A sonoridade do disco é composta de uma série de altos e baixos, representando o caleidoscópio de emoções e pensamentos que ocorrem na fase maníaca, e intencionalmente mesclando uma grande quantidade de gêneros musicais diversos, transitando pelo lo-fi, o country, o rock emo e trazendo uma combinação singular de parcerias com Alanis Morissette, Dominic Fike e SUGA, do BTS.

A personagem Clementine, de ‘Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças’ é uma das maiores representações da manic pixie dream girl na cultura pop. Créditos: Reprodução/Facebook

Para além de um retrato mais íntimo e pessoal das emoções de Halsey, Manic também é um manifesto que vai contra o modo como a bipolaridade é representada na cultura pop. Filmes como Scott Pilgrim contra o Mundo (2010), 500 Dias com Ela (2009) e Tudo Acontece em Elizabethtown (2005) ajudaram a disseminar o estereótipo da chamada “manic pixie dream girl”, uma personagem feminina que normalmente se encaixa nos padrões de beleza que agradam o protagonista masculino e aparecem para tirá-lo da monotonia de sua vida com sua personalidade excêntrica e seu jeito de ser “diferente das outras garotas”. Essas personagens raramente são apresentadas como pessoas com ambições ou profundidade emocional, sendo usadas apenas para que seu jeito selvagem de viver desperte o personagem masculino para o início de sua jornada.

“Eu acho que, de certa forma, nossa cultura tem uma obsessão e um desprezo pela figura da ‘mulher louca’. Nós a amamos, mas também usamos essa palavra como arma contra ela,” comenta Halsey. A própria artista admite ter internalizado esses estereótipos da mulher “maníaca”, acreditando durante muito tempo que essa parte de sua personalidade deveria ser retratada como autodestrutiva, insegura e barulhenta, como ela tentou representar em seu single “Nightmare”.

Muito especulou-se os motivos pelos quais “Nightmare” – que foi um hit de sucesso – não entrou para a tracklist do Manic, e Halsey esclarece; a cantora revela ter passado por um processo em que compreendeu que aquela não era verdadeiramente sua personalidade durante uma fase maníaca e sim uma visão estereotipada na qual ela mesma acreditou durante muito tempo.

“Para mim, o Manic foi uma celebração porque durante muito tempo eu lutei para aceitar minha mania,” relata. “Era a pior parte de mim. Eu considerava aquela garota, a da fase maníaca, irresponsável, não-confiável e instável. Ela falava alto demais, ela tinha um milhão de ideias e não conseguia concretizar nenhuma delas. E no processo de fazer esse álbum, eu tive que fazer as pazes com essa versão maníaca de mim mesma, e sentar e pensar: ‘quando estou na fase maníaca também é quando faço minha melhor arte. É quando sou mais compreensiva. É a versão de mim que me deu tudo o que eu tenho’.”

Na faixa de abertura do Manic, a brutalmente honesta “Ashley”, Halsey faz referência a uma das maiores representações da “manic pixie dream girl” ao inserir uma fala do filme Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças (2004) dita pela personagem Clementine, cujo nome batizou a segunda faixa do Manic. No trecho inserido em “Ashley”, Clementine se rebela contra a visão que os homens de sua vida têm dela e como eles a usam para “se sentir vivos” e desabafa sobre estar apenas “procurando pela própria paz”.

Ao decorrer do álbum, Halsey detalha experiências amorosas em que deu o melhor de si por homens que a mantiveram em relacionamentos abusivos e até mesmo perigosos, como é descrito em “Graveyard”, “You Should Be Sad” e “Without Me”. A artista também ilustra a dificuldade de manter relacionamentos amorosos quando se tem um diagnóstico de bipolaridade porque muitas pessoas a conhecem durante a fase maníaca e não querem ter que lidar com ela durante sua fase depressiva, ou então a conhecem em um período de estabilidade e se assustam ao presenciarem os episódios de euforia. “Ter uma expectativa e não ser correspondida pode acontecer em qualquer relacionamento, mas acontece com mais frequência se você tem um transtorno mental, especialmente um transtorno cíclico,” relata a Dra. Kapur.

Os questionamentos e inseguranças de Halsey quanto a relacionamentos amorosos são representados perfeitamente pela faixa “Forever… (Is A Long Time)” que começa como uma declaração de amor poética e gentil e sutilmente se transforma em um devaneio da cantora e então em um despejo raivoso de pensamentos autodepreciativos e autopunitivos por ter acreditado durante um momento que poderia ser feliz: “O que estou pensando? O que isso significa? Como alguém um dia poderia me amar?

Ao longo das 16 faixas do Manic, acompanhamos Halsey em sua viagem entre perder e encontrar a si mesma, seja em um episódio maníaco buscando desesperadamente por atenção em “3am” ou tentando lidar com os infortúnios da fama em “Still Learning” ou até mesmo finalmente encontrando um amor tranquilo em “Finally // beautiful stranger”. O disco se encerra com um singelo e sincero desabafo de pensamentos com “929” e encerra o fim de uma jornada em que Halsey precisou aprender a perdoar a si mesma e abraçar todas as partes de si, enxergando o melhor e o pior de seus episódios de mania.

“Eu sempre disse a mim mesma, como um mantra pessoal, que chegar à saúde mental não acontece,” reflete. “Saúde mental não é um destino. Você não chega num nível de saúde mental e pensa ‘Ok, estou feliz de finalmente ter chegado. Deu muito trabalho’. É uma jornada perpétua. Ela exige cuidado constante e atenção e energia. E às vezes é muito bom, às vezes é muito ruim, mas é perpétuo.”

LEIA TAMBÉM: Halsey é confrontada com um dilema sem solução em ‘If I Can’t Have Love, I Want Power’