Charm. Segundo o Cambridge Dictionary, a palavra se refere a uma qualidade que faz com que alguém se sinta atraído por outra pessoa, sendo também usada para designar algo que se acredita ter poderes mágicos.
Após três anos de hiato, Clairo retornou ao cenário musical em julho com seu terceiro álbum, cujas composições fazem justiça ao nome. A cada faixa, com seu jeito quase sussurrado de cantar, a artista convida o ouvinte a entrar em seu universo, colocando-o em um transe que só pode ser explicado por uma única palavra: feitiçaria.
Claire Cottrill começou a ganhar popularidade com o bedroom pop, — que foge das parafernálias tecnológicas dos estúdios de gravação e abraça o lema “faça você mesmo” — porém, desde seu último disco, Sling, ela vem apostando em um som novo, mais maduro e com influências dos anos 60 e 70.
O lançamento marca o início da parceria entre Clairo e o produtor Leon Michels, que soube usar os instrumentais a favor da voz delicada e letras íntimas da cantora, sem desviar o foco do ouvinte — algo que aconteceu, por vezes, durante o trabalho de Cottrill com Jack Antonoff.
Flautas, Wurlitzer, clarinetes, Mellotron e saxofones: Charm parece uma gravação da década de 70 largada em uma caixa de papelão lotada de outros cacarecos que ficou acumulando poeira ao longo dos anos, mas recuperada por algum curioso.
Embora tudo no álbum tenha sido gravado mais de 20 anos depois da virada do milênio, saudosistas desavisados que o escutarem soltarão um suspiro seguido da frase “não se fazem mais discos como este”. Ainda assim, mesmo com sonoridade nostálgica, o álbum não o faz de maneira caricatural ou forçada.
Clairo mantém composições introspectivas, mas aposta em instrumentais criativos
Em Charm, a artista não fugiu de letras sobre amor e ansiedades — temas comuns em seus outros álbuns — porém, é nítido o amadurecimento de Claire como letrista. Os instrumentais são, definitivamente, os mais interessantes da carreira e despertam uma grande expectativa para seus próximos projetos.
O álbum abre com “Nomad”, uma faixa guiada por um lindo dedilhado que evoca influências folk, como Joni Mitchell. A letra explora o medo da conexão humana, com Clairo confessando que, em alguns momentos, prefere o isolamento ao risco de se machucar emocionalmente.
Na sequência, “Sexy To Someone”, impulsionada por batidas de bateria animadas e toques sutis de sintetizador, se destaca por explorar de forma inteligente e divertida o desejo visceral de ser atraente aos olhos de outra pessoa.
Com um trecho de clarinete à la Paul McCartney, “Second Nature” sugere que o eu-lírico sempre soube que estava destinado a ficar com alguém, como se fosse um instinto — uma “segunda natureza”, como o próprio título sugere. Oscilando entre medo e paixão, a próxima faixa, “Slow Dance”, aborda a dificuldade de lidar com a incerteza em um relacionamento, o medo da perda e a confusão que surge quando o amor parece desvanecer.
Em “Thank You”, Cottril canta sobre relacionamentos complexos e admite deixar o orgulho subir à cabeça. A melodia do refrão é encabeçada por um maravilhoso piano percussivo, que remete às músicas de Carole King. Com letras em segundo plano, “Terrapin” foca em uma sonoridade de jazz sofisticada.
“Juna” é um dos grandes momentos do álbum e encapsula toda a sua essência. A letra aborda intimidade e vulnerabilidade em um relacionamento e, apesar de a sonoridade lembrar a da faixa anterior, ela se destaca pelo acentuado toque psicodélico e uma transição impecável de um “trompete bucal” para o instrumento verdadeiro.
“Add Up My Love” tem o refrão mais reconhecível do álbum, e, talvez por ele ser o ponto focal da música, faz com que a composição remeta às letras de Immunity, disco de estreia da artista. Já “Echo” foge totalmente do familiar. Com letra sobre um relacionamento estagnado, a track tem sonoridade sombria, melancólica e extremamente psicodélica — que facilmente poderia estar em The Piper At The Gates Of Dawn, do Pink Floyd.
“Glory Of The Snow” é uma boa faixa, mas a menos memorável do disco. Por fim, em “Pier 4”, o eu lírico narra, com vocais leves que flutuam sobre os riffs de guitarra, um vazio interno que ninguém consegue preencher. A vulnerabilidade da composição é o desfecho perfeito para um álbum que revisita diferentes estágios de um relacionamento que não deu certo.
Clairo parece entender cada vez mais os seus sentimentos e mostra que sabe expressá-los com maestria. Com auxílio da mágica co-produção de Leon Michels, mostrou um nível de sofisticação musical que parece quase impossível para alguém de sua idade.
A cantora deixou, definitivamente, o conforto das quatro paredes de seu quarto e agora está pronta para explorar novos horizontes musicais, abraçando uma maturidade artística que vai muito além do estilo que a consagrou.
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