Em março de 2020, escrevi uma resenha sobre a apresentação do Boogarins na Casa Natura Musical, nem imaginando que aquele seria um dos últimos shows presenciais que assistiria em muito tempo. O título do texto era “Boogarins se consolida na Casa Natura Musical com o mesmo entusiasmo de uma banda iniciante”, tendo em vista sua energia, entusiasmo e conexão com o público que me impressionou aquela noite. Pouco eu sabia também, que os próximos projetos da banda, Manchaca Vol. 1 e, mais recentemente, Manchaca Vol. 2, lançado no dia 9 de abril via OAR, iriam se tornar provas sonoras de tal conexão que ultrapassa a música como objetivo e sim como meio quando e a amizade se torna centro desta equação.

O projeto, que consiste em faixas gravadas durante o tempo da banda na cidade de Austin, no estado do Texas, Estados Unidos, conta com 12 faixas finalizadas e, em sua maioria, nascidas de improvisos ou do infinito baú de ideias dos músicos Dinho Almeida (Guitarra e Voz), Benke Ferraz (Guitarrista e Produtor), Raphael Vaz (Baixo, Sintetizadores e Voz) e Ynaiã Benthroldo (bateria), e demonstra uma inovação ao mesmo tempo que uma sincronia com a essência do grupo que só uma banda com tamanha e experiência e paixão como o Boogarins conseguiria.

“É um esforço, é um negócio trabalhoso, é uma cobrança, uma coisa que a gente sempre se botou, mas de um jeito que vêm muito natural assim”, compartilha Dinho ao Mad Sound sobre o processo contínuo de desafios que a banda faz questão de encontrar em sua carreira. “Nós éramos uma banda que, na verdade nem era uma banda, era eu e Benke gravando no quarto, e aí de repente a gente teve essa ideia de virar uma banda, veio Rafinha, veio o Ynaiã, fechar neste bloco, fomos fazer essa tour maluca com um monte de show maluco. Com várias situações que a gente poderia ter brigado, rachado, mas não, ‘Vamo, vamo, vamo!’, a gente não queria nem saber pra que ou porquê mas fomos, porque estava bom de fazer, o pique continuou. E aí vem o musical, que é isso que você tá falando, que é essa coisa de acreditar, tem show que é só improviso, nada com nada, a gente já sabe o que vai fazer, que vai sair algo, a gente acredita em um no outro. E é muito orgânico esse impulso e essa fé, mas dá um trabalho, cansa, os meninos cansam (risos). Gasta uma energia pra fazer acontecer. Mas acho que o jeito que a gente tem feito às coisas desde então é muito… parece que só vai ficando melhor, a gente vai aprendendo com o que a gente já fez, vai reencaixando, e vai tentando fazer coisa nova.”

“A gente pode dizer que isso é a força, a criatividade da banda, o espírito inquieto não sei o que, mas é a amizade mesmo, é o trem que, essa coisa de confiar um no outro de você querer fazer coisa junto com o outro, isso nós temos. E como a gente tem isso, a gente consegue chegar em um show, virar e ‘Vamos tocar aquela?’, todo mundo vai estar na pira. E acho que essa boa eficiência do Boogarins só acontece por conta da boa relação que a gente têm um com o outro”, ele relata.

No território do segundo volume de Manchaca, a psicodelia e indie brasileiro continuam em potência máxima como não poderia ser diferente em um projeto do Boogarins, no entanto, se debruçando mais sobre o álbum, canções como a assombrosa “Derramado” demonstram com sons e cores a maturidade da banda em criar novas narrativas e sensações não experenciadas antes pelos fiéis ouvintes do grupo. “Essa música era pra ser a abertura do disco, aí eu fiquei tipo ‘Ela dá uma ideia pro disco errada, vamos desce-la’. E aí agora eu estou vendo que todo mundo gosta dela, e é bom porque saber que as pessoas tão ouvindo ela lá embaixo, quer dizer que ouviram as outras músicas antes (risos), então tá certo, de certa forma”, ele conta. “A gente também ficou com essa impressão dela ser muito vingada, muito diferente das coisas que a gente faz. Muito do que a gente faz tem essa coisa de misturar, de fazer uma coisa mais ritmo Brasil mais indie, ritmo Brasil mais rock, ritmo Brasil mais nova psicodelia. A gente faz isso desde os As Plantas Que Curam, e essa música talvez seja a excelência disso, na minha visão. E essa música é muito velha, e nunca desenrolei essa música. A gente tentou fazer ela um pouco em São Paulo, e não desenrolou, e aí a gente foi pra Austin e lá a gente desenrolou, fez aquele refrão, e eu já tinha puxado aquele refrão de fato mas não sabia o que fazer com ele.”

“E todo mundo nesse negócio dela ter essa coisa de fogueirinha, de fogo, todo mundo colocou muito ali, a guitarra chama, a bateria chama, a transição do Rafinha chama”, afirma.”Essa mix é da Alejandra [Luciani], companheira do Rafael, que tem o Carabobina também, quando ela pegou, ela de novo ela fez aquela coisa que eu to falando pra você: ‘Queima mais! Queima mais!’ (risos), acho que quando a pessoa ouve essa música ela fica ‘Nossa, o bicho vai pegar!’ (…) Essa música instiga, não sei por que!”

“Derramado”, que impressiona pela estrutura e tensão crescente que se assemelha com os níveis de emoção de alguma produção cinematográfica com um belo roteiro, faz Dinho refletir e “amarrar” uma falação (minha), com outra “falação”, agora dele. “quando você fala que ‘Derramado’ é uma música muito bem estruturada, me fez lembrar que era o que a gente estava buscando mesmo. Foi algo que o Gordon [Zacharias], que é nosso manager que meio que desempenhou um papel de co-produtor junto com o Benke para ser o último disco, ele cobrava muito da gente a estrutura da música. Porque a gente vinha de um processo que era algo de desmontar a música, f*da-se se é verso ou refrão e f*da-se, música de dois versos tocando só os dois versos ela funciona, várias músicas nossas tem isso, e a gente ficava muito nisso nessa coisa de música não tem tamanho, não tem tempo. Então a gente estava nessa cobrança de estruturar tudo. ‘Correndo em Fúria’, ganhou uma estrutura linda, foi uma música que nasceu do improviso, que ganhou aquele verso a mais e ficou emocionante.”

“Então, falando de duas músicas, sobre como elas casam no processo, é muito isso, a gente estava em busca do improviso virar canção. Como você disse, e mergulha ele pra sentir essa canção do começo ao fim, acho que ‘Derramado’ a gente atingiu e ‘Correndo em Fúria’ que a gente porque ela veio do improviso total. ‘Derramado’ é uma canção que eu não sabia o que fazer, os meninos me ajudaram, e só quando faltava só uma pitadinha que era o êxtase, veio do improviso, e isso só diz pra nós pra confiar nas nossas ideias, mas trabalhá-las, ajudá-las a te ajudar também, não só ‘Ah, essa ideia aqui é muito boa’, não, a trabalhe, amassa o barco um pouquinho que você vai achar um trem.”

Junto com o desafio fora da zona de conforto, a banda, ao mesmo passo, procura aproximar mais ainda o conforto que sente em relação ao público com os inúmeros grupos do WhatsApp em que os músicos participam junto com os fãs, as missas realizadas por eles em 2020 todo domingo com o público, via Zoom, e agora as Sessões de Cura e Libertação, uma série de episódios produzidas por Gabriel Rolim que conta detalhes do novo projeto em um formato psicodélico e bem humorado, como não poderia não ser para o Boogarins, acompanhado de uma “banda de abertura” que é um show a parte: o frenético chat das transmissões que conta com piadas internas e até becks virtuais passando pelo ouriçado público.

“Quando foi o começo do ano e veio o Manchaca 2 com o Edital da Aldir Blanc, a gente com o edital a gente juntou a ideia da missa com a ideia da live, fizemos às Sessões de Cura e Libertação, então ao invés da missa, a gente entra com essa coisa da Aldir mas dessa vez mais bem produzida, mais trabalhado e tal”, conta. “Só que… esse chat, esse movimento, ele é muito maluco, eu vi vários festivais ao vivo e eu nunca vi um chat tão bom como qualquer coisa que a gente faça. Qualquer coisa que o Boogarins fizer vai ter um chat maluco. É muito bom! Você disse que no lançamento você ficou com um olho no disco e outro no chat? Eu fiquei com os dois olhos no chat, é muito bom (risos). Então por exemplo, eu já vi todos os episódios, então dentro de casa quando passa as Sessões, todo mundo dentro do chat falando bobagem, nem olha pra tela. Olha um trecho só pra comentar atualizado. Então eu acho que a gente fala que está exausto de live, não aguenta mais ver live, então acho que essa interatividade não é nem a gente que dá, é a moçada que é animada que cria esse clima. Isso mata uma saudade, dá uma esquentada no peito no sentido de, sei lá, não tem nada a ver com os shows, de fato, mas tem a ver com você estar com várias pessoas trocando ideia, isso é massa (…) Nesse nível que a gente tá de artista, a melhor coisa que a gente tem é isso, proximidade e respeito, a galera gosta do nosso som e sabe que a gente é pessoa, não é Deus na Terra, é pessoa!” – assista todas as Sessões de Cura e Liberdade aqui.

O presente, apesar de incerto, é colorido para o Boogarins, com dois discos lançados durante a pandemia, e uma apresentação que superou inseguranças no Multishow para cantar clássicos do Clube da Esquina, banda que foi referência imprescindível para os músicos no começo da carreira, ao contrário do que muitos pensem com as comparações psicodélicas até na imaginação com o Tame Impala, o Boogarins se prepara para o futuro. Com muitas músicas sendo criadas pelos membros da banda individualmente, Dinho revela não saber para que caminho os próximos discos do grupo irão seguir, se mantendo com os pés nas realizações do presente como uma banda estabelecida, mas animado para as surpresas que o futuro irá trazer, tal qual uma banda iniciante e sonhadora. “Acho que as músicas do futuro, Pétala, elas vivem em um lugar desconhecido ainda”, Dinho conta. “E talvez tenham coisas parecidas com essas, mas eu estou doido pra descobrir o que elas tem de novo. As coisas conhecidas a gente já conhece, mas o que é novo eu não sei, e eu quero ver!”

Ouça Manchada, Vol. 2, do Boogarins:

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