Entre o reflexo da luz da lua na água e o céu salpicado de estrelas, a voz doce e intensa de Laura Canabrava rasga versos profundos sobre espiritualidade, liberdade, sexualidade e o existir nesse mundo em Transe, Transa, Transitar, segundo álbum de estúdio da carreira, em um convite irresistível à introspecção.
Em um álbum banhado “na energia feminina da noite”, a cantora, compositora, feminista e macumbeira, como se apresenta nas redes sociais, compartilha a própria jornada pela vida por um olhar que parte de si e se expande ao movimento. “Hey, sai um pouquinho do lugar / E vem pra minha loucura / Cura / Loucura cura”, chama na faixa de abertura “Desconstrua”.
Com influências de pop, soul, o jazz de Ella Fitzgerald e música brasileira, de Céu a Xênia França, o ciclo de criação do projeto começou ainda em 2018. Naquele ano, Laura Canabrava lançava o primeiro single da carreira, chamado “Transe, Transa, Transitar” – que retorna no álbum de mesmo ano com uma nova cara e energias renovadas.
O retorno ao primeiro lançamento teve gosto de reconciliação com o eu do passado: se antes a faixa ainda tinha notas de angústia, agora é celebração e prazer. “Foi uma grande mudança e a música coube nesses dois momentos”, contou a cantora em entrevista ao episódio #005 do podcast Mad Sound.
Entre as extremidades desse ciclo impulsionado por “Transe, Transa, Transitar”, está a história de uma artista que começou as próprias composições ainda na infância, como forma de brincadeira. Quando chegou a hora de escolher a faculdade, o curso de música parecia a única escolha possível, mesmo com apenas algumas passagens por canto e coral antes do ingresso na instituição.
Esse movimento para concretização da carreira artística revela uma característica fascinante da cantora: a coragem de experimentar e a confiança na própria intuição. Se antes ela não se entendia como compositora e dava preferências a versões de grandes nomes da MPB, logo a urgência irrefreável dos artistas falou mais alto. “É um trabalho da intuição junto com a técnica, primeiro vem intuição, inspiração e a necessidade de se expressar, a brincadeira de se colocar, e junto com isso a técnica que vai trazer outros elementos para você”, explicou sobre esse processo.
LEIA TAMBÉM: O mergulho final antes da ‘Ascensão’: espiritualidade e resistência de Serena Assumpção
Ao se iniciar no culto a Orumila-Ifá, de matriz afro-cubana, a conexão espiritual a chamou para iniciar os trabalhos de Ayê (2018), com cantos para as entidades pela perspectiva e experiência de Canabrava. “Me encantei com esse universo, são composições para os orixás, mas de forma muito pessoal”, explicou. “Acho que o mergulho na religião também traz o mergulho na sua essência. Os orixás são você, sua essência, e falam muito de destino. Nesse mergulho, fui me entendendo mulher na sociedade e [como] muitas das minhas questões estavam relacionadas a isso”.
Desse entendimento e despertar para a importância de se colocar enquanto mulher no mundo, surgiu a necessidade de embarcar em assuntos para além da divindade no projeto seguinte. Em 2020, Canabrava lançou o EP Vontade, desabafando sobre desejos e insatisfações no campo íntimo e interpessoal e na busca por libertação, seja mental, sexual ou pessoal.
Essa inquietação faz “parte da estrutura da sociedade, a gente tantas vezes fica cansada e quer fugir”, explica. Nesses momentos, vale tudo: cortar o cabelo, morar no meio do mato, trocar de visual ou embarcar em aventuras na noite para “beber uma cachaça, beijar na boca e um sexo a três”, como canta na faixa-título.
Se as diferenças líricas e musicais parecem desconectar os primeiros projetos da artista completamente, o ciclo se fecha em Transe Noturno como a coroação do autoconhecimento artístico e íntimo de Canabrava. Todos os temas abordados até então, dos mais mundanos anseios até a conexão com os planos imateriais, encontram ponto de convergência e deságuam para o mundo, ampliando os caminhos de Vontade sem abandonar as bases de Ayê. “Faz parte de mim, eu sou essa mistura toda”, diz.
Na capa do álbum, vulnerabilidade e poder se confundem ao apresentar a artista agachada e nua, segurando um espelho que mostra uma imagem difusa de si, como o reflexo em águas inquietas e viajantes. “Transe é transição, esse momento em que você está nesse estado de absorver tudo isso, transformar. A noite tem seus mistérios e traz muitas reflexões”, resume ao explicar a força do nome do projeto.
A imagem traz essa provocação entre as dimensões, passado e futuro, reafirmando o convite para um mergulho interior que leva para um outro lugar: o despertar da consciência e compreensão de si enquanto criatura, enfim.
Para mergulhar mais profundamente na carreira de Laura Canabrava, escute a entrevista na íntegra da cantora para o podcast Mad Sound, com reflexões e curiosidades sobre o processo criativo de cada projeto.
LEIA TAMBÉM: Descubra Tolentino e a sensibilidade de seu storytelling