Cinco anos atrás, Serena Assumpção deixava o plano físico em decorrência de um câncer. O legado artístico da cantora, compositora e produtora cultural, porém, só estaria completo com o lançamento de Ascensão, único álbum da carreira, entregue ao público em julho de  2016.

Filha de Itamar Assumpção, compositor, cantor e instrumentista, se dedicou à preservação do legado do pai com shows em homenagem ao trabalho do vanguardista paulista, e também realizou participação na obra de outros artistas. Uma delas era a irmã mais nova Anelis Assumpção, com a qual trabalhou em duetos e composições.  

O primeiro e único álbum solo da carreira de Serena foi tarefa revelada em um jogo de búzios no Santuário da Irmandade de Ile De Oba De Dessemi. Para a concretização do projeto, que teve início em 2009 e só foi finalizado em 2015, Serena reuniu 40 artistas ilustres e deixou uma marca acesa no coração de cada um que teve a oportunidade de ofertar algo neste trabalho. 

“Foi um período onde vivenciei uma atmosfera musical espiritual muito elevada e significativa”, descreveu o produtor Pipo Pegoraro em entrevista ao Mad Sound. “Essa imersão afetiva sensível preparada por Serena nos traziam referências simbólicas que nos entorpeciam de forma majestosa para iniciar os trabalhos. Tudo feito por ela de maneira muito simbólica e que dá uma imensa saudade”. 

Mesmo com tantos nomes de enorme relevância na música nacional, como Karina Buhr, Tulipa Ruiz, Moreno Veloso, Filipe Catto, Xênia França, Tetê Espíndola, Juçara Marçal e muitos outros, o brilho das músicas está na união plena de afinidades e propósitos, onde cada estrela soa quase despida de si para consagrar algo muito maior em um movimento definido como “transmutação energética coletiva” pelo produtor e amigo. 

Serena Assumpção
Serena Assumpção. Crédito: Reprodução/Facebook

Após ser entregue ao mundo, Ascensão subiu aos palcos com um projeto também tocado pela artista. “A sensação mais representativa daquele período, feito de momentos muito marcantes, Serena em presença física, em estúdio, Serena em presença espiritual, nos shows – foi de união”, descreveu Céu. “Todos os artistas estavam muito fusionados espiritualmente, e a sensação é de que vibramos juntos, por ela, pelo som  dela, que era também nosso”. 

Cuidadosa e entregue de corpo e alma, a artista assumiu papel de guia e regente das gravações, que aconteceram entre São Paulo, Rio de Janeiro e Salvador. Antes de cada sessão, Serena oferecia aos presentes refeições relacionadas aos orixás que seriam trabalhados naquele dia. Na reta final, mesmo enfrentando as dificuldades impostas pelo adoecimento do corpo físico, ela não se afastou do projeto e deixou cada detalhe encaminhado para o lançamento. 

“O dia da gravação foi muito especial. Estar com a Serena, cantando uma canção dela, sentir e dividir com ela, aquela enorme alegria de realização, evocando Odoyá, ter o privilégio de ser encarregada de somar naquele paredão de som e potência, era uma mistura de responsabilidade e muito amor”, continuou a cantora sobre “Iemanjá”. “Uma tarde inesquecível, que se traduzia em pele arrepiada durante toda a sessão”. 

Da abertura com “Exu” até o fechamento Do Tata Nzambi”, Ascensão é um convite para um mergulho profundo nas águas coloridas da espiritualidade antes de emergir rumo ao encontro das maravilhas ali descritas. Delicado e intenso, o álbum agrega as melodias da música popular brasileira aos elementos afro-brasileiros do terreiro, enaltecendo as raízes e abrindo as portas aos recém-chegados. 

Muito além da experiência espiritual e transcendente dos sons e letras de Ascensão, o projeto é um grito político e de resistência pela liberdade religiosa, a sobrevivência da arte, o reconhecimento dos povos originários brasileiros, é todo amor e ternura, mas também justiça. “Complicado mesmo, Brasil, é ter o que dizer”, publicou Serena ao comemorar a finalização da produção musical do projeto “na unha, no laço e no encalço do tempo” ao lado de Pipo e Rodolfo Dias Paes, o DiPa

DiPa, Serena Assumpção e Pipo
DiPa, Serena Assumpção e Pipo. Crédito: Reprodução/Facebook/Alexandre Kuma

Em um cenário de intolerância, racismo religioso e apagamento constante da herança africana e indígena na identidade do nosso povo, o projeto segue como um dos melhores álbuns brasileiros pela qualidade musical e resgate da “importância das matrizes religiosas afro-brasileiras” e expressão do “rico e imagético universo que o constitui para a cultura humana”, como resume Pegorano. Nas palavras de Céu, é “evolução através das belezas acesas por dentro”, atuando como “um guia, um mapa, um oásis, um oráculo” até os dias de hoje. 

Nessa conexão de vozes e afetos, a abundância da vida se faz presente em todo o disco e na história poderosa do lançamento póstumo, provando a continuidade da existência para além da morte – neste plano e no próximo.

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