Texto por Stephanie Souza

É impossível ter vivido nas décadas de 90 e 2000 sem ter tido contato com o som do Planet Hemp. O grupo, criado por Skunk e Marcelo D2 em 1993, no Rio de Janeiro, surgiu como algo além de um produto musical de sua época: em um tempo incerto, marcado por graves sintomas da desigualdade social, apenas 10 anos depois do fim da ditadura militar, Planet Hemp veio como manifesto, como um guia ao exercício da liberdade social.

Temas políticos como a legalização da maconha e a violência policial foram abordados com maestria em sua fase embrionária, dando à luz a três álbuns que seriam valiosas contribuições para a música brasileira: Usuário (1995), Os Cães Ladram Mas a Caravana Não Para (1997) e A Invasão do Sagaz Homem Fumaça (2000).

Com fortes influências do hardcore, rap, samba, reggae e até do jazz, a banda produz um som enérgico, crítico e bastante eficaz nessa grande salada de referências, trazendo um resultado rico tanto em sonoridade quanto em lírica. Planet Hemp oferece uma discussão mais profunda acerca de seus temas, que ainda são discutidos 30 anos depois do início do grupo, fato que expõe a necessidade de se criar música que fique, que tenha validade de clássico: 

Para encontrar o show e seus fãs, bastava seguir a neblina que se acumulava pelos arredores do Espaço Unimed. Brincadeiras à parte, o público da banda era do mais variado, entre jovens, jovens adultos, adultos e até alguns idosos, tamanha atemporalidade da banda.

Dentro do Espaço Unimed, o DJ Wilson Power animava uma pequena parcela da casa com músicas que iam de Dead Kennedys à Bezerra da Silva, grandes influências tanto da banda quanto dos fãs. No fumódromo era onde a maior parte do público realmente se preparava para aquela noite. Mas na realidade, ninguém estaria pronto. 

Pontualidade nunca foi forte de artista, então com 20 minutos de atraso, Planet Hemp subiu ao palco do Espaço Unimed. Numa combinação babilônica de isqueiros ao alto, gritos de “legalize já!” e o groove de “Jardineiros” tocando, a noite já começava de forma bastante animada.

É importante mencionar que a montagem do palco, produzido por Daniel Ganjaman, era incrível e merece destaque: todos os aparatos dispostos formavam uma grande estufa da erva, no estilo Jardins Suspensos da Babilônia. Com coberturas térmicas, lâmpadas UV gigantes e muitas samambaias para compor o cenário, é um dos palcos mais bonitos que já tive o prazer de ver em anos. Em “Fazendo A Sua Cabeça” uma imensa roda punk se formou, fazendo camisetas rodarem e bebidas serem arremessadas. Era hora de gastar energia, a noite estava apenas começando. 

“Distopia”, primeiro single do álbum Jardineiros (2022), marcou o retorno musical do grupo de forma emblemática e abriu a primeira das participações especiais que viriam a acontecer naquela noite. Criolo, grande referência da cena e também artista parceiro na canção, subiu ao palco sendo extremamente bem recebido pelo público.

Major RD, rapper carioca, veio logo atrás e entrou em “Taca Fogo”. Rodrigo Lima (Dead Fish) teve seu espaço em “Fim do Fim”. Ambas participações foram robustas e enérgicas, injetando ainda mais ânimo aos fãs que se empurravam em grandes rodas. Entre as músicas, Marcelo D2 aproveitou para agradecer o público e dizer que acredita que o rap influencia e conecta. Nessa deixa foi a vez de Seu Jorge (ex Planet Hemp também) e Emicida invadirem o palco, em “Nunca Tenha Medo”. “Biruta” colocou Seu Jorge para exibir suas habilidades ao tocar a flauta desse soul dançante, encaixando todos em um transe pelas notas doces e psicodélicas. 

O segundo bloco começou com a participação de duas figurinhas carimbadas de uma das antigas formações do grupo: Zegon (Tropkillaz) e Black Alien. Passaram por clássicos como “Zero Vinte Um”, que não via o calor dos palcos há mais de 20 anos, e “Queimando Tudo”, um dos maiores hits do PH. O público retribuiu o momento com muita energia e muita paixão, pois era óbvio que aquele momento estava se cristalizando na história do raprockandrollpsicodeliahardcoreragga nacional.

BNegão e Marcelo D2 brincaram com um fã da platéia antes de “Puxa Fumo”, enquanto no telão, imagens canábicas psicodélicas acompanhavam de forma perfeita as linhas de baixo groovadas de Formigão. Kamau fechou as participações deste segundo bloco, ao entrar em “Bateu Uma Onda”, música com sample famoso de MC Carol

Marcelo D2 e BNegão iniciaram o terceiro e último ato da noite de maneira mais que especial, ao pedir para os fãs abrirem um corredor na pista, pois ambos iriam para o meio da roda. A equipe da banda prontamente montou uma espécie de palquinho no coração do Espaço Unimed, e, com “100% Hardcore”, o caos começava. Um enorme circle pit se formava em volta dos dois, câmeras gravaram a cena de todos os ângulos, mulheres e homens se empurravam enquanto outros abusavam dos crowd surfs: um momento catártico que com certeza ficou cravado na memória de todos os presentes.

Ao voltarem para o palco, foi a vez de Mike Muir (Suicidal Tendencies/Infectious Groove) dar as caras em “Salve Kalunga” e “War Inside My Head”, dando continuidade ao momento mais frenético da noite. As Mercenárias, banda feminina de punk rock dos anos 80, participaram em “Me Perco Nesse Tempo”.

A penúltima participação da noite ficou por conta de Pitty, grande amiga da banda, que entrou com “Admirável Chip Novo” na releitura do PH, feita para o álbum de remixes do clássico de mesmo nome da cantora. A música ficou com uma pegada acelerada, bem hardcore, contribuindo mais uma vez para que a energia não esgotasse por um segundo sequer. 

BNegão e Marcelo D2 conversaram bastante durante a noite: saudaram Skunk (membro criador do PH), Chico Science, Speed Freaks, Marcelo Yuka, Sabotage, falaram sobre a descriminalização e a legalização da maconha, sobre a Palestina, contaram algumas histórias desses 30 anos de banda e dedicaram “Samba Makossa”, cover de Chico Science, para Chorão. Chamaram os últimos convidados da noite, Baiana System, para participarem de um mashup de “Dig Dig Dig” e “Duas Cidades”. Russo Passapusso, vocalista, não se segurou ao confessar que PH é sua maior influência. O clímax da noite ficou por conta da gigante “Mantenha o Respeito”, com D2 segurando um baseado de plástico imenso. 

É bem claro que a banda e sua equipe planejaram essa noite de forma categórica, tendo a certeza que de seria um dos melhores shows de sua carreira. Todos os convidados se encaixaram de forma pontual e conseguiram acompanhar o ritmo frenético da banda.

Grupo indispensável para a história do rap/rock nacional, para a discussão sobre a legalização da maconha no país, se faz presente quando necessário, e, 30 anos depois, ainda modifica toda uma cena que o criou. Com uma noite baseada em fatos reais, Planet Hemp nos inseriu no cerne de sua história com sua alquimia musical orquestrada.

Nossa colaboradora Jéssica Marinho também esteve no show e registrou a noite. Confira a galeria de fotos exclusivas: