Este ano de 2022 talvez fique marcado, entre outras coisas, como o ano em que os shows, espetáculos e festivais dos quais o mundo todo ficou privado por cerca de dois anos, finalmente voltaram a ver a luz do dia. Em alguns casos, mais luz do que em outros, eu diria.

No Coachella Valley Music and Arts Festival ou simplesmente Coachella, que acontece sempre na cidade de Índio, deserto californiano do Colorado, Estados Unidos, luz do dia não é algo escasso, muito pelo contrário. Protetor solar, chapéus e óculos de sol são itens básicos na bagagem de quem se lança pra lá. Ciente disso, nosso intrépido time de duas pessoas, formado por este que vos escreve mais seu irmão e parceiro criativo, recém saídos da cobertura do Festival South by Southwest, no Texas, seguiu para a costa oeste dos Estados Unidos para essa outra aventura, e aqui vai uma tentativa de um relatório sucinto da experiência.

É sexta-feira, dia 22 de abril de 2022. Acabamos de largar nossas coisas no trailer que alugamos para ser nossa casa por três dias no deserto do Colorado, montamos nas bicicletas de passeio com cestinha e freio no pedal que alugamos para serem nossa condução e agora estamos a caminho do Festival que inicia seu segundo fim-de-semana de atividades. Chegaremos atrasados dentro do que tínhamos planejado pois o carro no qual conseguimos dois assentos vindo de Los Angeles demorou consideravelmente pra nos pegar e depois nos deixou na mão outra vez na operação que tivemos que fazer pra buscar nossas credenciais. Nossa motorista, Molly (e aqui não tem nenhuma mensagem oculta sobre ecstasy, que o povo também chama de Molly, o nome da motorista era esse mesmo), bem, nossa motorista parecia gente boa e fez um preço bom, mas cometeu algumas gafes que nos atrasaram. Sem entrar em muitos detalhes, em um certo momento achamos que a Molly tinha roubado nossas coisas e quando descobrimos que esse não era o caso, ficamos até felizes de vê-la de novo e acabamos perdoando os atrasos.

Bem, nosso caminho do trailer até o Empire Polo Club, casa oficial do Coachella, é de uns cinco quilômetros, mas pedalamos pelo menos uns dois a mais por desconhecer a área e não encontrar muita sinalização. Acostamento, ciclofaixas e como veríamos mais tarde, iluminação pública, também não são o forte da cidade de Índio, algo de dar uma certa raiva, especialmente se você foi impactado pela comunicação “seja amigo do meio ambiente, use menos carros” do Coachella e resolveu fazer a sua parte pedalando até o local do evento. Quero dizer, se você vai pedir para as pessoas serem amigas do meio ambiente, seja você, evento, mais amigo dos amigos. Não sei se eu repetiria a aventura um tanto perigosa das biciletas numa edição futura.

Acho que é chover no molhado dizer que em eventos da magnitude e com a quantidade de atrações do Coachella não dá pra tentar ver tudo. Nove palcos, sendo os dois maiores à céu aberto, outros cinco menores, cobertos, todos com nomes de grandes desertos (Gobi, Sahara, Mojave, Sonora e Yuma), além de duas tendas extra, e cada palco com uma média de umas dez atrações por dia. Se você conseguir assistir 15 por certo dos shows, pode considerar um belíssimo aproveitamento. Mas claro, o objetivo não é quantidade então você escolhe o que quer ver e desenha uma estratégia pra aproveitar bem o tempo, vendo os shows que mais te interessam mas também circulando pelo espaço, conferindo as instalações de arte, tirando fotos das coisas e na frente das coisas (especialmente se você gastou tempo produzindo um look especial para a ocasião), olhando as pessoas e deixando a experiência toda te invadir.

No nosso caso, já tínhamos alguns shows marcados para tentar ver, seja pela relevância para a nossa cobertura ou para nós mesmos pessoalmente. O primeiro que conseguimos realmente conferir acabou sendo o show da brasileira Anitta, que à exemplo do show da semana anterior, quebrou tudo. Não teve Snoop Doggy Dog participando ao vivo como na primeira semana, é verdade, mas assisti a transmissão da outra semana e fiquei com uma certa impressão de que nessa segunda o show estava até mais redondinho. Pode ser a emoção do “ao vivo” falando aqui, é verdade. Me chamou a atenção também a heterogeneidade do público. O show foi no palco principal então naturalmente veríamos todo o tipo de público por ali, gente que veio pra ver a Anitta e gente que nem sabe quem ela é, mas por alguma razão achei que toparia com ainda mais brasileiros. Acho que isso só atesta o caráter cada vez mais internacional da artista.

Desse primeiro dia, ainda fiquei bem feliz de conseguir ver a fúria do show dos britânicos-irlandeses do IDLES e a barulheira psicodélica dos australianos da King Gizzard and the Lizard Wizard que estavam na minha lista, mas quem ganhou meu coração mesmo foram os também australianos da Amyl and the Sniffers. A vocalista Amy Taylor, em especial, é carisma em estado bruto e domina o palco e a galera, que se sente mais do que à vontade pra subir lá com ela e dançar ou só mergulhar de volta para o público. Por sinal, quando Amy resolveu surfar a multidão de costas, tive a honra de fazer parte da onda que a empurrou de volta para o palco pra continuar a diversão do povo. Os shows maiores, no palco principal tem produções incríveis e a imagem nas telas gigantes já chegou em um nível de qualidade cinematográfica absurda mas a proximidade que a experiência de assistir aos shows nos palcos menores proporciona é algo único também.

No sábado, dia 23, um pouco mais safos na trilha das biciletas mas também cansados do dia anterior, tendo dormido pouco e com uma certa dose de poeira do deserto acumulada nos pulmões, conseguimos ainda de dia curtir um pouco da voz aveludada e das melodias cheias de soul de Arlo Parks, um tantinho da energia alegre do grupo Japanese Breakfast e em nome da minha filha, que é coreana de alma, conferir a precisão coreográfica do fenômeno pop das meninas da Aespa no palco principal. Mais de noite, a partir das 20:25, quem subiu no palco Gobi pontualmente (aliás, uma constante no festival, a pontualidade) foi Pablo Vittar e seu time, que garantiram um show com muita energia e um público próprio. Ao contrário do show da Anitta, sobre o público da Pablo a minha impressão foi a de uma galera um pouco menos heterogênea, com muita gente cantando em português e várias produções de figurino incríveis (o que, pra se destacar no meio do Coachella, onde muita gente já vem com produções bem espalhafatosas, já é um mérito em si). O encerramento da noite foi com o show de Billie Eilish, que além de todo o espetáculo em si, de música, dança, vídeo, Billie passeando sobre a galera em braço mecânico e esse tipo de coisa, ainda teve a participação histórica de Hayley Williams do Paramore. Esse show seria nossa maior experiência de púlico grande numa mesma vibe, por assim dizer. Bem impressionante.

Mas pra mim particularmente, o ponto mais memorável da noite foi o show do multitalentoso Danny Elfman, que tem uma carreira excepcional produzindo temas e trilhas sonoras para o cinema mas que há algumas décadas também teve seu tempo de astro pop liderando a banda de rock Oingo Boingo. De volta aos palcos como performer depois de mais de 30 anos, Elfman montou um show com um pouco de tudo, se valendo de banda de rock, coral e orquestra (conduzida pelo guitarrista original da Oingo Boingo, Steve Bartek) pra dar o seu recado. Músicas novas, hits da Oingo Boingo e execuções dos temas mais clássicos que compôs para o cinema que, só pra ilustrar, incluem o tema dos Simpsons, do Homem-Aranha de Sam Raimi e todas as melhores obras de Tim Burton, inclusive seu Batman de 1989! Um show turbinado e esquizofrênico (no bom sentido) como o prórpio Elfman, que do alto dos seus 68 anos cantou, interpretou, tirou a camisa e pulou, como qualquer colega mais jovem, mas com uma bagagem de muita qualidade e deveras mais volumosa que qualquer dos outros artistas nessa edição do Coachella.

No terceiro dia meus olhos já ardiam consideravelmente do acúmulo de poeira do deserto e meu parceiro tinha adquirido a famosa “tosse do Coachella”, da qual devo ter escapado porque usei direto minha bandana sobre nariz e boca. Pernas e costas já doíam mais do que no segundo dia, mas o fato de este ser o derradeiro nos deu um gás extra e lá fomos nós pedalando para a última etapa do festival.

Se teve um dia que resumiu o caráter internacional do festival para a gente foi o terceiro. Nossa agenda tinha Viagra Boys, da Suécia, o sul-africano Orville Peck, os italianos da Maneskin e Nathy Peluso da Argentina, entre outros. A parte mais divertida pra mim foi o primeiro que vimos destes shows que citei, o dos Viagra Boys, que nos garantiu aquele mesmo tipo de experiência que Amyl and the Sniffers trouxe. Show divertido, sem deixar de ser paulada e vocalista carismático, que neste caso, ao invés da fúria sexy de Amy Taylor, veio na forma única de Sebastian Murphy e seu torso nu, barrigudo e tatuado, óculos escuros e dancinha de tio bêbado. Uma ilha de “gente como a gente” em um mar de mega produções e gente sarada do showbusiness de forma geral. Uma boa dose de mosh pit e gente surfando a multidão nesse show também. Iria fácil em outra apresentação dos Viagra Boys. Depois deles vimos Orville Peck, que acabou sendo um pouco prejudicado aos meus olhos porque começamos o dia muito em cima com os Viagra Boys. De qualquer forma, a música country de Peck é bem charmosa, com uma dose de bizarrice que traz um certo frescor ao estilo. O fato de que Orville Peck sempre usa uma máscara com franjas sobre o rosto faz parte dessa estranheza no seu show, além de coincidentemente combinar muito bem com o visual de uma bela parcela do público feminino do Coachella que apostou nos chapéus de cowboy e franjas por toda a parte pra montar os looks desse ano.

Sobre a Maneskin, apesar de muita gente ter chegado até o palco Mojave pra vê-los conhecendo apenas o sucesso cover dos Four Seasons, “Beggin”, é bem provável que a banda tenha saído de lá com uma nova leva de fãs pois o show dos italianos é energia pura embalada nos melhores clichês de performance de rock n roll. Nathy Peluso, por sua vez, é um animal completamente diferente. Ao seu modo também é energia pura, mas é uma energia bem feminina e das mais poderosas. Bailarina que é, se move o tempo inteiro, e seduz constantemente, na mesma medida em que se impõe e bota medo com sua atitude de mulher forte. Da sua banda, percussão, naipe de sopros e batidas eletrônicas, completam um caldo de sabor latino sem deixar de ser moderno e internacional.

Se você chegou à essa altura do texto já percebeu que eu falhei miseravelmente na tentativa de fazer um relatório sucinto da experiência no Coachella. Não me culpe demasiado, querido leitor. Foram três dias intensos, recheados de muitas coisas incríveis, outras nem tanto e algumas até desagradáveis. É bem complicado resumir essas coisas ao ponto de dar a devida importância a tudo que se viu, ouviu e experimentou. Essa foi só uma de muitas experiências possíveis. Tenho certeza que o povo da música eletrônica teria relatos completamente diferentes para dar por aqui. Da mesma forma, quem foi ao festival em formato casal deve ter tido uma experiência incrível também. Muitos lugares por lá pra esticar uma canga e deitar com seu amorzinho e esperar pelo próximo show. Por outro lado, essa não é uma festa barata, especialmente se você ganha em reais, gasta em dólares e vai passar o dia inteiro dentro dessa área onde uma lata de Heineken custa o equivalente a mais de 60 reais. Refletindo um pouco agora, talvez essa seja uma das razões de eu não ter visto muita gente bêbada ou fora da casa por assim dizer. O que é bom por um lado mas meio sem graça também. Tudo sempre tem pelo menos dois lados e não seria diferente aqui.

Num olhar superficial, por exemplo, vi muita, mas muita gente, menos interessada na música em si do que em desfilar e registrar seus looks na frente das estruturas coloridas e das lindas palmeiras do deserto do Colorado, pra poder mostrar pro mundo que esteve ali, mas também vi muita gente com corpos não-padrão, felizes e orgulhosos demais em exibir suas formas adornadas com looks por vezes muito criativos, por vezes bem bizarros, mas sempre com muito corpo à mostra e não tinha ninguém julgando ou apontando esse ou aquele esquisito. No âmbito profissional, achei a atenção dada à imprensa de forma geral bem insignificante, beirando o desrespeito mesmo. De uma comunicação confusa via vários endereços de e-mail diferentes antes do início do festival e longas demoras pra responder dúvidas simples, passando pela tenda de imprensa bem mixuruca e a política meio anti-imprensa livre de não permitir câmeras e equipamentos profissionais no evento (à excessão dos profissionais parceiros da casa), até a pura falta de comunicação e disponibilização de imagens pós-evento. E a pior parte é que eventos como o Coachella definem o padrão para vários outros ao redor do mundo, o que significa que logo mais um monte de festivais pode estar seguindo esse padrão besta também.

Epílogo: nossa última pedalada até o trailer, com os pulmões e a cara cheia de poeira, foi a mais cansativa, meu pneu traseiro furou no trecho final e tive que empurrar a magrela. Dormimos umas duas horinhas e Molly passou nos pegar pra voltar pra Los Angeles. Não deu pra dormir muito no carro porque ele estava cheio e o fato de alguém em um assento mais à frente estar assistindo The Batman no celular (reconheci os diálogos porque já tinha assistido o filme) sem fones de ouvido não ajudou muito. Depois de quase três horas de viagem, qual não é minha surpresa quando, chegando na Cidade dos Anjos, percebo que quem “assiste” ao filme de Robertt Pattinson é ninguém outro senão nossa própria motorista, Molly, com o celular convenientemente apoiado no painel à sua frente. Apesar do perigo, sobrevivemos e ainda tivemos um grande dia que envolveu trilha até o topo do letreiro de Hollywood e primeiro banho de mar no Oceano Pacífico. Toda experiência ruim vai ter uma boa pra contrabalançar e felizmente não seria diferente agora.

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