Música e poesia se entrelaçam na travessia pelos 15 minutos e 34 segundos que compõem o EP Mulher ao Mar, de Bel Aurora. Aos 24 anos, a artista lança seu primeiro trabalho musical misturando poemas autorais e composições musicais como uma introdução ao seu disco de estreia, Metanoia, que deve ser lançado em 2022. 

Vinda de uma família muito ligada à música, ao teatro, à poesia e à arte no geral, Bel uniu suas várias referências e criou uma atmosfera dramatúrgica para seu primeiro EP, que abre com o poema “Mulher Ao Mar”, recitado por várias camadas entrelaçadas da voz da artista. 

Mulher ao mar
Mulher ao mar
Mulher ao mar

sobre uma fenda abissal/
uma jangada
espinha dor sal
sol
ventania

(tênue saudade da costa, dissipando na crista das ondas)
canoagem
calmaria
embrulho estomacal
travessia
coragem

“Eu sempre quis que as minhas letras fossem poemas também”, conta Bel Aurora em entrevista ao Mad Sound. “Então, enquanto eu estava compondo eu fazia um exercício em que quando eu achava que estava ficando pessoal demais, eu tentava usar uma imagem ou algo assim que pudesse abrir o leque de possibilidades.”

O poema “Mulher Ao Mar” foi retirado de uma zine chamada Partir, feita pela cantora quando ela se encontrava em um complicado processo de ir morar sozinha, enfrentar o rompimento de um relacionamento e elaborar as violências que tinham atravessado-na até aquele ponto. O sentimento de estar à deriva, sozinha e “navegando em águas bravias” neste período de sua vida foi traduzido nas 4 músicas e 3 poemas que se fundem em seu EP.

A primeira canção do EP é a poderosa composição “Ofélia”, escrita por Felipe Kouznetz e interpretada lindamente por Bel Aurora para dar um início teatral a essa jornada. O instrumental do EP é de teor minimalista, usado como ambientação para as letras poéticas do projeto. O acordeom guia a faixa “Deriva” e o grave do piano constrói a atmosfera de “Encouraçado” – uma composição sobre o Encouraçado Aurora, um dos primeiros barcos ocupados pelos soviéticos durante a Revolução Russa, que também servia como uma antena de rádio e que foi uma das inspirações para o nome artístico da artista, que se chama Isabel Chaib Moreau.

A faixa de encerramento “Sabor Seu / Onde Não Quero Estar” traz em sua primeira parte um poema de Bel Aurora que remete à agressão sexual que sofreu em 2017, período em que cursava Letras na USP. Os versos refletem um processo de autocura e entendimento da violência pela qual a artista tinha passado, e existem como uma forma de Bel Aurora recuperar um pouco da autonomia de sua própria história: “A sua violência / Sutil e paliativa / Que me detinha / Eu descobri / Ser parte da minha própria / Falta de vontade da minha vida”.

“O nosso cérebro deseja proteger a gente da memória da violência do ato, do momento, então rola um um branco e a memória que a gente tem é um grande desconforto que sobe. É uma erupção de mal-estar,” relata Bel. “Seu corpo sente, seu corpo lembra, mas você não consegue estruturar o que aconteceu, quem foi. Aquela hora some. Quando eu comecei a escrever e pensar sobre essas etapas, é uma forma de interpretar essa lacuna, de construir uma narrativa minha enquanto aquele momento foi roubado de mim.”

“Quando você é violentado, alguma pessoa te invade e escreve a violência dela sobre a sua história,” continua. “E aí quando você tem essa lacuna e você escreve sobre aquilo, preenche com uma criação sua, você está, de certa forma, fazendo uma ocupação daquele terreno seu de novo. A elaboração para nós, vítimas de violência, é uma forma da gente tomar posse do nosso próprio território de novo.”

Ainda que curto, o EP Mulher ao Mar equilibra densidade e delicadeza ao tratar de temas que são, ao mesmo tempo, muito pessoais e compartilhados por outros, e apresenta Bel Aurora como uma artista sensível e inventiva, preparando o terreno para seu disco de estreia, Metanoia.

O navegar pelas águas turbulentas de Mulher ao Mar termina após o poema “Sabor Seu”, em “Onde Não Quero Estar”, uma composição da adolescência de Bel que encerra essa jornada com uma mensagem de força e retomada da própria liberdade: “Eu te expulso pra poder pulsar / Novas feridas só pelas minhas iniciativas proferidas”.