O tão temido “segundo álbum” pode ser motivo de nervosismo para uns, mas para Vítor Guima é possível que traga até certo conforto. Considerado uma das vozes promissoras da nova MPB, Vítor tem o que ele chama de “uma obsessão completa por números pares”, o que faz de seu disco de número dois, Canções para Beatriz, um prenúncio de boa sorte antes mesmo da criação.
Depois do sucesso de seu álbum de estreia, O Estrangeiro, que foi eleito um dos 25 melhores de 2019 pelo Estadão, Vítor Guima deixou um pouco de lado as reflexões existencialistas de Albert Camus e a tragédia de Orfeu e Eurídice e decidiu contar uma história de romance do cotidiano entre o eu-lírico e sua musa, Beatriz.
O novo disco passa por uma série de referências que vão desde Ney Matogrosso e Zeca Baleiro, até Roberto Carlos e a banda de rock latino Santana. Mesclando pop, rock, samba, bossa nova e MPB com sutileza e precisão, Vítor Guima vai contando capítulo a capítulo a história deste breve relacionamento que é anunciado de forma apaixonada e otimista no prólogo “Ti”, onde voz e violão desenham as palavras “Sinto que deixei tudo para não ter mais ninguém além de ti”.
Canções para Beatriz faz referência em seu título à trilogia de obras de Leonard Cohen (Songs of Leonard Cohen, Songs from the Road e Songs for Rebecca) e conta uma narrativa com começo, meio e fim em suas nove faixas. A contagem espelha o número de canções presentes no disco anterior, o que Vítor Guima justifica como um modo de “se desafiar” por conta de seu apego aos números pares.
“Para você ter uma noção, eu fui adoçar esse café que eu estou tomando e eu não coloco uma colher cheia, eu coloco duas colheres rasas,” conta em entrevista ao Mad Sound. “Nessa conversa eu estou usando uma pulseira, dois anéis e um anel na mão direita, ou seja, quatro acessórios. Eu acho que esse nove foi pra desafiar e porque coube, também. Eu desafiaria o meu desafio se eu achasse que precisava ter oito ou dez [músicas].”
Coincidência ou não, é na faixa de número dois que a história começa de verdade. A vibrante “As Horas” descreve a euforia agradável de início de relacionamento em um samba, que, de acordo com Vítor é “disfarçado, funkeado, mas estruturalmente um samba”. Diferente de tudo que o compositor já tinha feito antes, essa foi a escolhida como primeiro single do Canções para Beatriz e, felizmente, foi bem recebida pelo público. “Foi intencional fazer algo diferente, mas eu não tinha parado pra pensar ‘Mas e aquela galera que ouviu aquele disco folk? O que eles vão achar desse negócio?’”, conta Vítor.
Narrar uma história de amor nem sempre se mostra tarefa fácil. Vítor Guima conta que, apesar do disco ter elementos pessoais, a história em si não foi algo que ele viveu especificamente, o que faz com que a obra misture realidade e ficção enquanto se enlaça e se desenrola. A apaixonante faixa de número três, “Beatriz”, traz a referência do rock latino e uma ponte escrita por Paulo César de Carvalho, enquanto a triste “Abraços Partidos” foi escrita especificamente para ilustrar o fim desse relacionamento ofuscante que queimou rápido como a pólvora.
O samba se faz presente mais uma vez na agridoce e nostálgica “Até Depois”, que é seguida pela sombria “O Fim”, trazendo notas graves de violino para embalar a melancolia dos últimos momentos vividos com a pessoa em questão. Depois da esperançosa “O Passeio do Sol”, é apresentada uma reprise de “Ti”, dessa vez cantada com certo pesar pelas coisas perdidas e pelas que não foram. “Todos os meus passos pensei / E tantos dos teus traços cantei / Sinto que deixei tudo para não ter mais ninguém além de ti”, lamenta Vítor Guima.
O álbum e o relacionamento se encerram em “Eu Tentava Tanto”, que Vítor descreve como “uma espécie de epílogo meio magoado, mas meio esperançoso” e também sua canção favorita no disco. Quando perguntado sobre o motivo, ele responde, de forma bem-humorada: “Porque eu sou meio dinossaurinho e foi a primeira vez que eu aceitei coisas no disco que eu vou chamar de ‘modernas’, entre aspas, porque já são usadas há muito tempo, mas por exemplo, o looping de bateria, o synth – se o Eduardo Kusdra, que foi o produtor e arranjador do disco, me falasse isso no O Estrangeiro eu ia falar ‘de jeito nenhum’. Ia insistir em usar ‘instrumentos que existem’. Hoje em dia eu acho isso uma idiotice, mas na época eu pensava assim.”
A capa do disco traz uma pintura da artista alemã Iris Schomaker, que ao invés de exigir pagamento pela obra, pediu para que Vítor ajudasse alguém de sua preferência que estivesse em situação de vulnerabilidade na pandemia. Voluntário da APAE-Araras desde os seus 12 anos de idade, o músico doou 30% dos custos que o álbum teria tido para a instituição, realizando o gesto em nome de Iris. “Eu sou um cara bem pessimista, mas essa experiência reforça minha fé na humanidade um tiquinho,” conta Vítor.
Mencionando outra de suas prováveis referências, Vítor Guima surpreende ao revelar que seu álbum favorito de 2021 é o Perpetual Caos, da banda de thrash/death metal Nervosa. “Eu não acho que seja uma influência direta, só que de alguma maneira, que seja algo percussivo, da Eleni Nota, que é a nova batera delas, tem algo que eu acho que vai ficar pra alguma coisa,” reflete Vítor. A diversidade de referências e a liberdade criativa certamente foram elementos que fizeram toda a diferença no processo de criação do Canções para Beatriz. “A Baila, que é o selo do qual eu faço parte, eles estão por trás de mim artisticamente, então eu tenho certeza que se eu falasse ‘vou lançar um disco de rock progressivo de duas horas’, eu não acho que eles iriam me tolher,” afirma.
Com alguns videoclipes ainda a serem lançados, Canções para Beatriz reafirma a qualidade do trabalho de Vítor Guima com tranquilidade e delicadeza, provando que o artista tem a habilidade necessária para explorar os temas que lhe vierem à mente, desde questões existencialistas até as vivências do dia-a-dia. O nome Beatriz, entretanto, acena sutilmente para uma das referências mais eruditas do músico, sendo uma homenagem à personagem escrita por Dante Alighieri em A Divina Comédia, obra que é citada na faixa homônima do disco. Ao fim da nossa história e também da nossa conversa, só resta uma pergunta a ser feita para Vítor Guima: quem é Beatriz?
“Uma musa que trouxe grandes memórias e grandes ensinamentos,” responde. “Uma questão sobre relacionamentos que às vezes eu vejo a galera comentar é que às vezes o relacionamento termina e a pessoa ‘morre’ pra outra e eu discordo disso veementemente porque tiveram coisas muito belas. Pra mim é o oposto. Quando o relacionamento acaba, eu só consigo pensar nas coisas boas, me sobra um puta carinho. Então, eu acho que é isso: uma musa inspiradora que viveu coisas muito belas ao lado desse protagonista e também trouxe muitos ensinamentos, até quando não estava mais lá.”