O arquétipo da mulher selvagem é peça central do livro Mulheres Que Correm Com Os Lobos, de Clarissa Pinkola Estés. Em sua obra, a autora analisa uma série de contos populares para delinear os traços dessa figura sublime que, segundo ela, existe no âmago de cada mulher: uma força que se recusa a ser domesticada e oprimida, mesmo quando a sociedade patriarcal insiste em demonizá-la, caçá-la e diminuí-la.

Foi inspirada por essa ideia que a artista independente Gabi Lins traçou os contornos que estruturaram seu primeiro EP, ULTRARROMÂNTICA. Impulsionada pela súbita proximidade da morte, a cantora de Salvador (BA) viu na pandemia um sinal de alerta e incentivo para finalmente começar a viver de acordo com seus próprios termos e seguir sua paixão pela música. Aos 24 anos, Gabi assumiu o lugar que sempre quis para si mesma: o palco da própria vida.

Conduzindo diversas vertentes do pop com voz marcante, o projeto ULTRARROMÂNTICA foi pensado para ser muito mais que um EP. A sequência de faixas e videoclipes foi acompanhada simultaneamente por uma minissérie documental que apresenta ao público quem é Gabi Lins. Altamente influenciada pelo álbum visual Lemonade, de Beyoncé, Gabi construiu um conceito para ser explorado em seu trabalho de estreia não só através da música, mas também dos sentidos.

Buscando inspiração no movimento literário do século XIX, a cantora utiliza características do ultrarromantismo para delinear a história de um relacionamento abusivo em quatro atos: loucura, carência, delírio e vício. Apesar de Gabi tratar dos temas com leveza e músicas divertidas, a segunda geração do romantismo foi marcada por características como o pessimismo, o exagero das emoções, a idealização do amor e o escapismo da realidade. Em cada uma de suas faixas, a artista explora esses conceitos através do som, das imagens, das cores e do contraste entre seriedade e descontração, representando o contraste entre luz e sombra encontrado na arte ultrarromântica.

Em entrevista ao Mad Sound, Gabi Lins ressaltou que o ultrarromantismo foi um movimento que expressava exclusivamente a visão do homem branco letrado e versado nas artes. Em seu projeto de estreia, ela queria trazer uma nova perspectiva para jogo: a da mulher. “Peguei experiências que eu já passei, que minhas amigas passaram, que outras gerações conhecem – inclusive na minha família – e tentei botar para fora algo que me incomodava muito e que eu via acontecer o tempo inteiro no meu meio social: o relacionamento abusivo,” conta. 

Gabi reconhece que ser a pessoa responsável por quebrar ciclos geracionais, familiares e dos grupos de convivência pode ser uma experiência solitária e pouco compreendida, mas que é importante “viver com mais consciência e não no piloto automático”, uma vez que a geração atual tem mais informações e condições de se ver fora de um molde de relacionamento que visa aprisionar e oprimir a mulher.

Para estabelecer as bases de seu som, Gabi Lins se inspirou em fortes nomes femininos, mesclando referências como Duda Beat, Dua Lipa, Rosalía e Ivete Sangalo, enquanto sua escrita viu reflexos de Taylor Swift e Clarice Lispector (pautada em uma visão de mundo metafórica que ela alega ter adquirido através de Chico Buarque). Apaixonada por música desde pequena, escreveu sua primeira canção aos nove anos de idade. Chamada “Princesa Invisível”, a música falava sobre uma paixão de infância não correspondida e trazia em um de seus versos uma mensagem curiosamente profética: “eu quero amar, mas não quero amar assim“.

Primeiro ato: Loucura – “Será que eu sou mesmo louca?”

No primeiro ato do ULTRARROMÂNTICA, Gabi Lins representa a loucura, transferindo o arquétipo da mulher selvagem para o da mulher artista, que, nas palavras da própria cantora, “é o ser humano mais temido na sociedade”. Mesclando os sons da Bahia a um brega pop bombástico, a explosiva “ONDE HÁ FUMAÇA HÁ FOGO” celebra a figura da mulher intensa, desafiadora e livre, que não se contenta com pouco. Essa foi a música escolhida por Gabi para se apresentar ao mundo, acompanhada de um videoclipe com cores quentes e fortes, como o vermelho vivo e o laranja seco.

“Escolhemos um ritmo super quente para representar a loucura, que é aquela fase do relacionamento abusivo onde você fica se perguntando o tempo todo se você realmente tá maluca, se ser você mesma – criativa, intensa, expressiva – é realmente uma coisa ruim em você,” conta a artista. “Quando você está em um relacionamento onde seu parceiro fica o tempo inteiro dizendo ‘Fala mais baixo’, ‘Não precisa ser assim’, ‘Não precisa se vestir desse jeito’, você começa a se questionar porque sabe que para estar naquele relacionamento você vai ter que mudar.” 

Segundo ato: Carência – “Eu gosto de você ou só não gosto de mim?”

A submissão excessiva à repreensão do olhar alheio leva à perda da autoestima, representada no segundo ato pela carência. No single “Fruta Estragada”, Gabi Lins explora a fase da dependência emocional em um pop divertido com um quê de Dua Lipa, onde compara a pessoa abusiva com uma fruta podre e tóxica, sem valor nutricional ou benefício, sempre oferecendo um ato vazio de dar migalhas de atenção quando lhe convém.

“Eu acho que nossa carência é muito relacionada à fome,” reflete Gabi. “Quando você tá com muita fome e vai ao mercado, com toda certeza você vai comprar coisas em excesso ou coisas que vão fazer mal para a sua saúde. Você não compra uma verdura, você compra um pacote de sequilhos. A mesma coisa é com o amor: quando você não está bem consigo mesma e está com muita vontade e muito desejo de ser amada, qualquer amor vale, qualquer amor supre; mas não nutre.”

Terceiro ato: Delírio – “Até que o alarme nos separe”

O terceiro ato, “delírio”, traz um pop latino quente na faixa “Pura Imaginação”, que adota a sensualidade do reggaeton para falar de fantasias e devaneios, representando uma fase do relacionamento abusivo onde o negacionismo é tudo o que resta. Depois de representar a perda das amizades e do apoio das pessoas amadas no vídeo de “Fruta Estragada”, Gabi Lins mostra a dificuldade da personagem em encarar a realidade ao se ver sozinha.

O single conta com a participação do produtor josefe, que aparece no videoclipe em imagens holográficas, acentuando a sensação da presença imaterial, imaginada. Contrastando com os vídeos anteriores, “Pura Imaginação” traz tons frios como o azul escuro, o cinza gelado e a única aparição, em peso, do preto. Ao final das imagens, uma garrafa de vinho é mostrada sob o colchão onde dormia a personagem para simbolizar a saída da fase sonhadora e a entrada de um novo e último estágio: o vício.

Quarto ato: Vício – “Um gole não é só um gole quando se torna dependente”

Engana-se quem pensou que essa história teria um final feliz. Pautado no pessimismo do ultrarromantismo, o desfecho do ULTRARROMÂNTICA é contado na excelente “ROSÉ”, uma faixa viciante de pop alternativo inspirado em Billie Eilish, trazendo violinos distorcidos e sons eletrônicos. Aqui, Gabi Lins aborda o vício como o problema final decorrente desse relacionamento abusivo, mas também faz uma crítica à glamourização do consumo de álcool presente especialmente na música popular brasileira.

“Eu queria retratar a realidade através da arte,” explica Gabi. “Eu acho que muita gente que sai de um relacionamento abusivo sem a ajuda das pessoas ao redor ou ajuda profissional, tende a seguir caminhos que não são tão bacanas. Principalmente mulheres casadas, com filhos – porque esse tipo de relacionamento não acontece só na nossa idade. Eu quis retratar o vício de modo que, além do fechamento pessimista, eu também fizesse uma crítica à romantização do álcool – principalmente na música pop brasileira. Eu acho que você pode sim, beber, mas não para curar algum tipo de dor interna. Eu amo música sofrência, adoro, danço todas, mas eu estava sentindo falta de uma música que não estimulasse os jovens a descontar [as frustrações] no álcool.”

Refletindo sobre tudo que estudou e aprendeu em sua árdua jornada em busca do amor próprio e da desvinculação de relações que não eram saudáveis, Gabi aponta a imensa responsabilidade da sociedade pelo relacionamento abusivo, culpando um sistema que visa lucrar às custas da autoimagem feminina. “Eu acho que as mulheres em si têm uma autoestima muito frágil por conta de todas as cobranças,” relata. “Inclusive, O Mito da Beleza foi um livro que me impactou muito porque fala sobre a cobrança social em relação à gente, aos nossos corpos, a tudo que é nosso; intelecto, saúde, é tudo muito bem pensado pela indústria. É uma indústria que ganha dinheiro com a baixa autoestima feminina.”

Ela relembra a relação delicada que teve com a própria imagem a partir da adolescência por conta do olhar depreciativo masculino, criticando a força cultural do machismo, onde a visão dos homens sobre ela acabou por afetar a visão dela mesma sobre si. “Eu posso dizer que agora, aos 24 anos, não sou 100% porque acho que ninguém é, mas eu sei que sou muito mais eu nesse momento,” afirma. “Quando eu estava muito frágil foi muito difícil e eu entrei em relacionamentos difíceis que não foram legais para mim.”

É na escolha de apontar os holofotes para temas tão sensíveis e de modo tão intensamente artístico que Gabi Lins se destaca. Em seu primeiro trabalho, a artista demonstra dedicação, talento, minuciosidade, inteligência e força. Sem querer dar muitos detalhes sobre os próximos passos, ela afirma com seriedade e convicção: “Você pode ter certeza que eu não quis fazer um projeto só musical. Esses assuntos que eu estou tratando, eu tenho noção que são sérios. Não pode ser só isso.” Logo no primeiro passo de sua carreira, Gabi Lins se mostra uma estrela que já sabe exatamente como brilhar.

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