Billie Eilish é a grande responsável por manter o pop interessante em 2024. Com o retorno decepcionante de Dua Lipa e a derrocada de Taylor Swift em direção a “mais do mesmo”, dois dos álbuns mais aguardados da música pop deixaram um sabor amargo na boca de quem esperava mais.

Enquanto Beyoncé se aventurou com maestria em terras country, o sétimo álbum de Ariana Grande se mostrou um forte candidato a fazer o pop brilhar novamente, mas, apesar de ser um de seus projetos mais louváveis, serve mais ao catálogo e à carreira da cantora que à descoberta de novas tendências para o coletivo. Quem está fazendo coisas muito interessantes, mais uma vez, é Billie.

Não é de hoje que a parceria entre ela e seu irmão Finneas chama a atenção por sua inventividade. Quando foi lançado em 2019, o álbum de estreia WHEN WE ALL FALL ASLEEP, WHERE DO WE GO? pegou o mundo de sopetão e chacoalhou a internet com seu dark pop extraído direto dos pesadelos da jovem Billie, com distorções de voz, baixo proeminente e videoclipes onde ela é alvo de experimentos científicos e rasteja por uma paisagem em chamas com enormes asas enlameadas como o próprio Lucifer recém-expulso do paraíso.

A estética sombria que fascinou e aterrorizou o público deu lugar a cores neutras e imagem suavizada em Happier Than Ever (2021), onde Eilish explorou sua feminilidade e sexualidade de diversas maneiras, até mesmo além da música. Os cabelos escuros e as roupas largas foram substituídos por fios platinados,  camisas regata e um simbólico ensaio sensual para a capa da Vogue, onde Billie aparece usando espartilhos e vestimentas sensuais de cetim, sentindo-se à vontade em mostrar o corpo pela primeira vez.

Agora com 22 anos, em HIT ME HARD AND SOFT (2024) ela quer se reconectar com a Billie do passado; aquela que existia antes dos Grammys e dos Oscars e da fama avassaladora. Encarar a idade atual de Eilish é ser forçado a reconhecer, com certo choque de realidade, o quão nova ela era quando entrou na indústria fazendo barulho e o quão nova ainda é agora, apesar de já ter vivido o suficiente para uma vida inteira. É difícil tentar lembrar de um mundo antes de Billie Eilish e até pouco tempo atrás ela sequer tinha atingido a maioridade estadunidense.

Esse resgate de uma Billie ainda mais jovem acontece em HIT ME HARD AND SOFT de maneira perceptível, mas não saudosista. O aceno aos trabalhos mais antigos está lá, mas repleto de novas características e trazendo a técnica e personalidade da Billie de agora. Ela abre o disco com a delicada e confessional “SKINNY”, à imagem e semelhança de “Getting Older”, que inicia o disco anterior. Na nova faixa, Eilish retoma as questões sempre presentes envolvendo seu corpo, seu peso e sua autoimagem, ao mesmo tempo em que apresenta sua intenção de fazer as pazes com seu eu mais jovem. “A antiga eu ainda sou eu, e talvez a verdadeira eu, e eu acho que ela é bonita”, canta logo no início.

Os característicos vocais sussurrados remetem ao sucesso mais recente da canção vencedora do Oscar e do Grammy, “What Was I Made For?”, mas a faixa também se mostra uma isca sorrateira para aqueles que acusam Billie de cantar sempre do mesmo jeito. Mais para o final da música, ela surpreende ao soltar a voz lindamente e continua a impressionar com vocais emocionantes e de arrepiar em faixas como “WILDFLOWER” e “THE GREATEST”, onde seus questionamentos mais pessoais se transformam aos poucos em um grito primitivo em busca de respostas, assemelhando-se em construção à “Happier Than Ever”.

A evolução musical não se apresenta só nos vocais de Eilish, que agora estão mais potentes e confiantes. A produção de Finneas se deixa levar por caminhos labirínticos que se expandem, se encontram, se separam e tomam rumos independentes; às vezes para desaguar no mesmo lugar do início, ás vezes para acabar em um destino completamente novo. Um grande destaque é a cativante “CHIHIRO”, que, fazendo referência ao filme A Viagem de Chihiro (2001), também nos leva por uma viagem própria, com linhas de baixo metálicas, batidas programadas e distorções eletrônicas que fazem o ouvinte dançar inevitavelmente. Outras como “BLUE” e “L’AMOUR DE MA VIE” surpreendem com outros inesperadas ou viradas que transformam a música completamente. Você nunca sabe aonde uma faixa do HIT ME HARD AND SOFT vai te levar.

A contagiante “LUNCH” mostra um lado de Billie Eilish que sabe se divertir com a música pop e chiclete. Ela já falou de sexo antes, mas nunca de maneira tão despreocupada e divertida quanto ao dizer que gostaria de “almoçar” uma garota em específico. Essa é também a primeira vez que Billie fala em suas músicas sobre seu desejo sexual por mulheres, tendo descoberto esse lado de si mesma recentemente. A produção e o videoclipe em cores technicolor, trazendo uma Billie de volta aos trajes largos e agora usando grillz nos dentes, remetem um pouco à “bad guy” mas sem o cinismo e o deboche da adolescência. Com bom humor, Billie está sendo sincera: ela sente tanto desejo por uma garota que o ato sexual a satisfaz como se fosse uma refeição. É divertido para ela e se torna divertido para nós, assim como a baladinha retrô da romântica e propositalmente clichê “BIRDS OF A FEATHER”.

As semelhanças com faixas antigas estão espalhadas por todo o disco. A excelente “BITTERSUITE” (que muitos ouvintes brasileiros associaram ao funk “Malandramente”) soa como uma irmã mais velha da sensual “Billie Bossa Nova”. “THE DINER” traz uma produção circense macabra para ambientar uma história de obsessão e perseguição contada do ponto de vista de um stalker. A estética sonora meio filme de terror remete à “bury a friend”, mas dessa vez os pesadelos de Billie são de carne e osso e bem centrados no mundo real. Ela já falou de seus problemas com stalkers antes, como na também sombria “NDA” e em “OVERHEATED”.

Apesar dos paralelos entre álbuns poderem ser traçados por ouvintes mais atentos, HIT ME HARD AND SOFT caminha com as próprias pernas e não tenta repetir fórmulas de sucessos anteriores. Assim como é impossível ser atingido de forma “brusca e suave” ao mesmo tempo, como evoca o título, também é impossível retornar a quem Billie foi um dia porque agora ela é uma nova pessoa. Qualquer referência serve como mero rascunho para as 10 faixas que se tornam um universo tão interessante e mutável a cada novo play que é impossível ouvir o álbum uma vez só. Também é impossível tirá-lo do loop, apesar do conteúdo liricamente denso. Billie afunda em suas emoções do mesmo jeito que afunda em águas profundas na capa do disco e o resultado é uma obra honesta, sensível, por vezes brutal, mas majoritariamente divertida. É um alívio constatar que, mesmo depois de três álbuns e vários EPs, enquanto tivermos os irmãos Billie e Finneas, a música pop parece estar em boas mãos.

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