Dois anos e alguns meses depois do sucesso estrondoso do álbum de estreia, parcerias com as maiores marcas do mundo, sete Grammys, uma turnê mundial com datas esgotadas interrompida pela pandemia e, finalmente, a maioridade, Billie Eilish entrega um retrato vulnerável e explosivo sobre as contradições do mundo em Happier Than Ever

As composições ácidas e honestas, voz sussurrada e, por vezes, contida, aliadas à produção impecável de Finneas, irmão mais velho e parceiro musical inseparável da maior revelação do pop na década, são levadas a um patamar completamente novo no projeto. Com um olhar diferente ao falar de amor e romance, traição e vingança, fama e trauma, a artista aborda embates filosóficos pessoais, políticos e sociais sem querer dar respostas prontas, provocando tanto admiradores quanto perseguidores para encontrar coerência diante de tantos níveis de hipocrisia. 

Logo na abertura, “Getting Older” é uma avalanche de desabafos de terapia em sonoridade minimalista: a gratidão pelas conquistas na carreira e o apoio dos fãs em contraponto ao desejo pela própria privacidade e o medo de stalkers na porta de casa, a necessidade de receber atenção e o orgulho de ter chegado até aqui, a jornada de autoconhecimento pela saúde mental e superação de cicatrizes do passado. “Tenho alguns traumas, fiz coisas que não queria / Estava com medo demais para contar, mas agora acho que é a hora”, avisa nas últimas linhas da canção. 

Os recados sarcásticos para um antigo romance começam na breve “I Didn’t Change My Number”. Ainda que amores tóxicos e fracassados sejam uma temática constante na discografia de Billie desde “Ocean Eyes”, primeiro hit da carreira, ela escreve de um outro ponto de vista, com nova maturidade e ciência do próprio valor. 

Por vezes, Billie soa como uma estrela perdida dos anos 1950, dona de uma autenticidade quase intuitiva que nem mesmo Lana del Rey consegue passar, como na sensual “Billie Bossa Nova”, “Halley’s Comet” ou “Everybody Dies”, uma reflexão cheia de alma sobre a fragilidade da vida. Mais evidentemente, muitas vezes ela também se parece com uma garota pin-up ou atriz das antigas com seu cabelo loiro platinado no tom de Marilyn Monroe ou Betty Brosmer, franja e tons de rosa pastel na capa do disco, mas seus olhos seguem em desafio, se recusando a se curvar aos significados atribuídos a tudo que faz. 

Billie Eilish. Crédito: Reprodução/Facebook
Billie Eilish. Crédito: Reprodução/Facebook

Todas as principais mensagens do álbum são marcadas pela experiência de ser uma mulher no mundo. Se muito foi falado a respeito do ensaio da cantora para a capa da Vogue UK, entre apoiadores do suposto empoderamento pela sensualidade e aqueles que viram o “bom exemplo” de Billie se destruir, o que Happier Than Ever realmente desnuda é o dilema impossível da feminilidade, igualmente imposta como obrigatória e condenável, fonte de poder e vergonha, artificial e determinada biologicamente. Não existe saída fácil para ser mulher e livre, uma vez que ambas as pontas do espectro são opressivas e não se aceita nada entre esses extremos. 

Essas questões já são suficientes para levar milhões de meninas e mulheres ao redor do mundo a odiar os próprios corpos e arriscar a própria vida em dietas, procedimentos estéticos e fórmulas comportamentais imaginadas pelos ideais masculinos. Aos 12 anos, antes da fama, Billie tomou pílulas para emagrecer. Depois, enfrentou depressão e automutilação pela insegurança. Com a exposição a nível mundial, nem mesmo as roupas largas foram capazes de protegê-la do assédio e body shaming – e agora ela desabafa sobre tudo e todos, sem perder tempo com canções para alvos fixos ou letras amarguradas. 

Mesmo com os desafios e fantasmas do passado, Eilish está em uma missão. Se não há saída fácil, ela corre em ritmo frenético mesmo em faixas tranquilas como “my future”, sobre amor próprio e a vontade de conhecer quem será daqui alguns anos, e deixa essa velocidade chegar em “Oxytocin”, uma música viciante e sexual, pensada para ser “muito divertida de apresentar ao vivo”, segundo explicou ao Spotify. 

“Eles vão te dizer o que você quer ouvir / Então vão desaparecer / Vão te reclamar como um souvenir / Apenas para te vender em um ano”, alerta a uma pessoa em posição de vulnerabilidade em “GOLDWING”, um possível aviso para os tantos abusos cometidos por poderosos ou uma metáfora para a fama. Uma vez que o tesouro é descoberto, começa a exploração. 

“Lost Cause” não foi o primeiro single do álbum a ser lançado, mas foi uma das primeiras amostras da nova fase da cantora visualmente. Cantando sobre um ex problemático e fracassado, mas que pensa ser incompreendido por ser muito especial, a jovem aparece em uma tarde das garotas no clipe. Mostrando mais pele do que nunca, o vídeo logo gerou polêmica e foi acusado de queer baiting, pois muitas pessoas acreditaram que Billie Eilish insinuava envolvimento com as colegas de cena, apesar de ser heterossexual. Rapidamente, a legenda “i love girls” de uma foto de bastidores foi interpretada como de teor sexual, uma conclusão que parece dizer mais sobre o olhar do público sobre os corpos femininos do que as intenções da artista. 

Esses olhares foram abordados com potência em “Not My Responsibility”, um poema falado originalmente apresentado em turnê para confrontar as opiniões sobre como ela deveria agir, se vestir e pensar nos tempos de cultura do cancelamento. “Se eu visto o que é confortável, não sou uma mulher / Se removo as camadas, sou uma vagabunda”. O beat da narração se transforma em “Overheated”, em uma transição ao melhor estilo de Confessions On The Dance Floor, de Madonna

Para fechar a sequência de críticas contundentes, “Your Power” é uma acusação a todos os homens poderosos, seja por classe ou idade, que tiram vantagem de jovens mulheres, denunciando a questão do abuso sexual em todas as esferas da sociedade. 

“NDA”, faixa seguinte, traz uma distorção sombria de “bellyache”, parte do EP don’t smile at me, no clipe: mais uma vez caminhando em plena estrada, a alegria do amarelo dá lugar à noite sombria, perseguidores sobrenaturais e carros que ameaçam atropelar a cantora, numa perfeita analogia ao assédio midiático e a necessidade de se proteger, mesmo que isso signifique exigir a assinatura de acordos de não-divulgação dos rapazes com os quais se relaciona.

Se a evolução vocal e lírica não foi impressionante o suficiente até aqui, “Happier Than Ever” explica bem o motivo para ser a faixa título do projeto. Dividida em dois anos, inicialmente suave e vintage, a música se transforma completamente e mostra o novo momento de Billie por completo: com sintetizadores e sem medo de gritar o que pensa, essa não é uma canção sobre ter alcançado a felicidade, muito menos o disco. No fim, se trata do alívio de quebrar círculos tóxicos, mesmo diante de situações sufocantes, declamado com um hino de estádio, digno de ser berrado pelas próximas décadas com as hordas de fãs que conquistou em seis anos de carreira. 

Terminando o disco em um ciclo completo, mais uma vez com a voz suave e sussurrada em “Male Fantasy”, Billie Eilish deixa uma marca eletrizante de uma jovem mulher que se recusa a se limitar, sem medo de eventuais enganos, e de uma artista imparável, em constante reinvenção e crescimento. Resta saber onde mais ela chegará depois do topo do mundo.  

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