Melanie Martinez é capaz de matar e morrer pela própria liberdade criativa. E foi exatamente isso que aconteceu em PORTALS, terceiro álbum de estúdio da carreira, no qual a cantora é algoz e vítima do dolorido ritual necessário para o renascimento e conquista da liberdade.

Aos 27 anos, a artista precisou percorrer um caminho sem atalhos e sem retornos para se desvencilhar da personagem que a acompanhou desde a adolescência. Da jovem Melanie Martinez do The Voice, a cantora ganhou uma base de fãs internacional ao encarnar Cry Baby por dois álbuns de tons pastéis, nos quais os desafios da infância e pré-adolescência são usados como analogias para críticas sociais precisas e deliciosamente irônicas. 

Para finalmente sair desse mundo de algodão doce e gotas de sangue, o próximo passo natural era obrigatório: deixar a personagem de Cry Baby (2015) e K-12 (2020) para trás. No filme criado para o segundo álbum da carreira, a protagonista é vista pela última vez diante do enigma de seguir nessa vida ou adentrar em uma nova experiência. 

Talvez, Melanie Martinez poderia ter deixado tudo nessa incógnita. Mas é sabido que, na cultura pop e do clamor por fan service, uma morte sem corpo nunca é definitiva, então era preciso um final mais explícito para a jovem de roupas cor de rosa. 

Em “Death”, primeiro single e clipe de PORTALS, Cry Baby é enterrada e sua alma liberta em uma nova forma. As circunstâncias da morte parecem antropofágicas, com uma cena violenta (e ainda assim poética) na qual essa nova Melanie finca uma espada no corpo sem vida e já cravejado da persona anterior.  

A nova era de Melanie Martinez

Ainda que habitado por fantasmas de um passado querido, com acenos visuais e sonoros ao trajeto da cantora até aqui, o novo mundo de Melanie Martinez é longínquo e cheio de possibilidades em todos os aspectos, permeado pelo desejo de se libertar das expectativas e gaiolas impostas por outras pessoas, seja no amor, na carreira ou até na percepção dos significados entre vida e morte. 

Sonoramente, o álbum PORTALS é ousado, com baterias fortes, camadas de voz propositalmente alienígenas, distorções e uma atmosfera ainda onírica, porém mais densa. Se antes os sons de xilofones e do estourar de bolhas de sabão ecoavam em um ambiente sanitizado, apesar da sujeira denunciada e confessada nas letras, o ressoar da voz de Melanie agora viaja por túneis de paredes úmidas e escorregadias.

Enquanto o EP de estreia e dois primeiros discos da carreira da artista mostraram linearidade no som e conceito, o novo disco é um salto criativo da artista. Apesar de não chegar a causar estranheza (pelo menos no sentido de não ser algo completamente fora do que se poderia esperar dela, de qualquer forma), o novo disco dá largos passos na direção dessa tão desejada liberdade artística.

Em faixas como “Void” e “Faerie Soirée” , existem alguns dos arranjos mais encorpados e orgânicos que Melanie Martinez já apresentou e até mesmo o posicionamento vocal está diferente, mais maduro e certeiro. 

Melanie Martinez divulga o álbum 'PORTALS'
Melanie Martinez divulga o álbum ‘PORTALS’. Crédito: Reprodução/Facebook

As baladas “Light Shower” e “Leeches” são momentos quase minimalistas,  guiados por violão e confissões vulneráveis sobre relacionamentos, do amor ao abuso, que tornam possível a ideia de um set acústico no show da cantora, algo pouco favorável aos trabalhos anteriores da cantora.

Mesmo com tantas novidades, o disco consegue soar familiar em faixas como “Tunnel Vision”, “Spider Web” e “The Contortionist”, com melodias ora suaves, ora marcadas e dançantes, e o cantar enfático de quem conta uma história já sabendo do final e prova um ponto, seja com analogias cirúrgicas ou ameaças violentas que em nada condizem com a suavidade do som. 

Apesar desse escape visual e sonoro do que seria o mundo humano, o disco ainda  está profundamente conectado com problemas enraizados na nossa sociedade. Sempre crítica da disparidade de gênero e da forma como os corpos femininos são objetificados e cobrados de um padrão inexistente, ela reconhece seu poder e desafia quem o nega constantemente.

No storytelling refinado de Melanie Martinez, aranhas e sanguessugas são arquétipos para comportamentos tóxicos nas redes sociais e na indústria musical e a arte do contorcionismo descreve o esforço inumano de se enquadrar nos desejos alheios, enquanto a própria laringe da cantora vira palco de uma batalha épica na qual Martinez reafirma o poder que tem ao usar a própria voz para se defender. 

As músicas de Melanie Martinez realmente se tornam esses portais mencionados no título do álbum, com sonoplastia capaz de levar o público para cenários fora da própria atmosfera terrestre, no meio da floresta noturna de fadas ou testemunha de passos apressados que se movem misteriosamente entre as árvores. 

Com a cantora agora em um novo mundo e um novo corpo, PORTALS pode ser resumido como um convite para a libertação da mente e do corpo, independentemente dos sacrifícios que isso possa significar.

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