Essa semana no Mad Sound o álbum escolhido para ficar no loop é o Viagem ao Fim da Noite, do Supercolisor (leia aqui). Para a celebração do novo disco do grupo ficar completa, Jérôme Grás montou uma playlist exclusiva para o Mad Sound com influências francesas para mostrar um pouquinho da sua bagagem e do seu país de origem.

O músico planejou uma viagem completa com vídeos e textos explicando cada escolha. Prontos? Então aperte o cinto e curta a viagem com a gente!

Michel Fugain – “Une belle histoire” (1972)

Cresci na região metropolitana de Paris nos anos 1980 e 90. Na escola, nosso professor de música nos ensinava canções que ninguém na turma queria cantar. Estávamos todos ocupados demais escutando os primeiros discos de rap francês, o rock ou a Eurodance, que era febre na época. Quem nunca escutou Ace of Base jogue a primeira pedra!

Uma destas canções que ele nos obrigava a cantar era “Une belle histoire” de Michel Fugain, que nela conta, em poucos versos, o início, o meio e o fim de um encontro amoroso. Só anos depois me dei conta da imensa beleza desta canção que desde então não me deixou mais.

25 anos depois, do outro lado do oceano atlântico, queria publicamente agradecer a escola republicana francesa por ter me introduzido a este grande e belo repertorio francês. Já no que tange à flauta doce… ☺

Michel Berger – “Les princes des villes” [1983]

Em casa tínhamos um piano, e minha mãe gostava de tocar música clássica de vez em quando. Outra coisa que ela gostava era de escutar Michel Berger. Menos famoso fora da França que outros (como Serge Gainsbourg, Jacques Brel ou Georges Brassens), este grande artista merecia muito mais destaque, no meu ver.

Melodias simplesmente perfeitas, harmonias seguras e coloridas, grooves incríveis, letras impactantes com uma prosódia moderna, Michel Berger sabia escrever canções e por isso foi responsável por boa parte dos nossos hits dos anos 80, cantados por ele ou por outros intérpretes.

Com uns 7-8 anos, quando comecei a tocar o piano de forma autodidata, peguei o best of do Michel Berger da minha mãe e fui tirando esta Les princes des villes, La groupie du pianiste e outras…. Não sabia que ele iria se tornar um norte e uma grande influência para mim, mesmo 30 anos depois.

Observação: no videoclipe principal reduziram o final da canção (versão curta para os veículos). Mas recomendo escutar a versão completa porque o desenvolvimento do final é simplesmente maravilhoso!

Gilbert Montagné – “Les sunlights des tropiques” [1984]

Certas verdades precisam ser ditas, então vamos lá: a música popular francesa é bem menos rica que a brasileira. Quando vim morar no Brasil em 2005, fiquei imediatamente apaixonado pelo imenso repertório popular em comum (literalmente centenas de canções) que permite que quase toda reunião termine em rodas de canções por aqui, abaixo dos trópicos. Isso se perdeu na França com a influência da música inglesa e sobretudo americana – infelizmente perdemos nosso repertório de canções populares, de valsas e de danças em geral.

Mas na época em que tocava em bandas de casamento na França descobri que “Les sunlights des tropiques” de Gilbert Montagné era o hit perfeito para embalar um baile, dos priminhos que ainda não foram mandados para cama às mais relutantes avós, e também animava o pessoal que assistia da beira da pista, fumando cigarros. Também descobri que este refrão agregador (ainda mais com esta modulação surpresa do Sol Maior pro Sib Maior) pode gerar um momento de real comunhão. Definitivamente, é como se nós, franceses, precisássemos de 2 gramas de álcool no sangue e gravatas já enlaçando a testa para assumir que: sim, conhecemos toda a letra desta canção de cor, sim, queremos cantar juntos e sim, nós também queremos rebolar. 

Por isso vos digo: os raios de sol dos trópicos é a quintessência da MPF (Música Popular Francesa) e somos todos os filhos de Gilbert. Amém.

Serge Gainsbourg – “Melody Nelson” [1971]

Ainda pequeno, lembro de Serge Gainsbourg bêbado ou brigando na televisão, nos últimos anos antes da sua disparição. Este alter ego do artista, Gainsbarre como o chamávamos, ainda era brilhante claro, mas acredito que não se compara com o jovem Gainsbourg. Eu sabia que várias das canções que escutava na rádio eram dele, mas não fazia ideia da amplitude e da riqueza daquela obra. Na adolescência, quando só morria de amores por artistas ingleses e fazia questão de não escutar nenhum francês, descobri seus álbuns fundamentais, em particular Histoire de Melody Nelson, que a mim fascinou de imediato, como a quase todo mundo.

A relação ambígua entre o cantado e o falado, a poesia inédita que surge a cada palavra e os arranjos extraordinários de Jean-Claude Vannier fizeram deste disco um cult no mundo inteiro, a na minha pequena biblioteca pessoal também.

Laurent Voulzy – “Le soleil donne” [1988]

Descobri a música brasileira na adolescência; como todo mundo na gringa, pela Garota de Ipanema. Assim fui apresentado à inacreditável obra de Tom Jobim. Quando logo na sequência conheci Milton Nascimento, foi demais para mim – tive que ir conhecer o pais que produzia artistas destes. A partir daí, meu caminhar foi me aproximar da melhor música do mundo, e consequentemente vir morar aqui. 

Mas descobri que no repertorio francês já haviam sintomas deste vírus brasileiro que me picou. Em Le soleil donne, Laurent Voulzy (originário do Caribe francês) começa com acordes, uma batida e uma melodia que, pra mim, também ficariam perfeitos num contexto brasileiro. 

Rapidamente esta “brasilidade” se mistura com levadas mais tipicamente caribenhas nas guitarras ou no groove de bateria, nas letras em espanhol… Em resumo, vira uma bela mistureba estilística, bem como eu gosto. Mas o importante está em outro lugar…

Kassav’ – “Sye Bwa” [1987]

A riqueza da música francesa se deve muito às influências externas que ela conseguiu incorporar. Em particular, o Caribe tem um papel central, com seus artistas vindo da ilha da Martinica e da Guadalupe.

Lembro nitidamente de ficar vidrado nesta canção da Kassav’, o maior grupo francês da história, com estas letras em Crioulo, das quais entendia uma a cada três palavras, e isso me deixava instigado. Enquanto tentava decifrar este código secreto, a música deles entrou em mim e não saiu mais. 

Alguns anos depois, vivendo como baixista de guerrilha em Paris, fiz muitas amizades com músicos dessa origem, que aliás eram, de longe, os melhores em atividade na cidade (até não sobrar muitas gigs para mim). ☺

Mais alguns anos depois, desta vez no Brasil, fui introduzido mais fortemente à cultura do Zouk e do Bèlè por Manuel Mondésir, com quem produzi um disco de fusão caribenha-brasileira Caribe do Brasil do Omelô. Inclusive, este disco conta com Thomas Bellon, o baterista atual de Kassav’, mas é uma história longa que mereceria um post dedicado…

Les Rita Mitsouko – “Marcia Baila” [1984]

Se a geração de jovens atuais será marcada para sempre pela terrível propagação do Coronavírus, a minha se define por outra, a da AIDS, que acabou tirando muito da leveza e do otimismo dos quais se beneficiaram a geração dos meus pais. 

Sobre este tema, em 1984 (o ano em que nasci), os Rita Mitsuko lançaram a obra-prima Marcia Baila, a história real (e infeliz) de uma dançarina argentina radicada em Paris que perdeu a vida nesta tragédia. Lembro ser instigado pelo contraste entre o clipe animado e as letras do refrão: “mas foi a morte que te assassinou, Marcia”. Contudo, uma belíssima canção.

Les Innocents – “Un monde parfait” [1995]

Se tem um estilo onde os franceses não mandam particularmente bem, é no rock’n roll. Claro, é difícil competir com a Inglaterra tão próxima e tão rica neste quesito! Por isso muitas bandas francesas optaram por cantar em inglês, tais como o Phoenix, sem dúvida, para mim, a melhor banda de rock da minha terrinha. [mas já imaginou o quão louco 1901 ou Lisztomania teriam ficado em francês?]

Então no rock francês poucos conseguiram atingiram a perfeição (justamente) como Les Innocents neste mundo perfeito com letras deliciosamente ambíguas e harmonias vocais lindíssimas.

Phoenix – “1901” [2009]

Tá bom, tá bom, vamos abrir logo esta exceção! Tive o prazer de ver Phoenix ao vivo um par de vezes, em várias épocas, e nunca me arrependi. Entre o primeiro disco deles United (que já era muito bom) e estes 3 últimos através dos quais ganharam destaque mundial, se nota uma banda que já se originou com muito talento mas que, sobretudo, trabalhou duro ao longo de mais de 20 anos, e merece todo o seu sucesso. 

Lembro em particular de um show deles em Paris, em pleno verão, quentíssimo, para a turnê da sua obra-prima Wolfgang Amadeus Phoenix. A música era tão poderosa e tão dançante (o que não é comum neste contexto rock) que o público entrou num transe, numa comunhão, como raramente vi. 

Em termos de produção, este disco (de 2009) é até hoje uma referência. Ian e eu chegamos a tentar entrar em contato com o genial produtor deles, Philippe Zdar, que infelizmente veio a falecer em 2019. Ficaram com ele o segredo destas produções impecáveis.

AIR – “Sexy Boy” [1998]

Lembro como se fosse ontem quando apareceram AIR e seu Sexy Boy. Um clipe inovador, um som diferente, letras em francês mas com uma forma de cantar nunca vista… Entrei rapidamente no universo deles e acompanho a linda trajetória até hoje. Acaba que, fora esta canção introdutória, eles gravaram 95% da carreira em inglês, o que os ajudou se conectar com o mundo inteiro, junto com os outros maiores artistas franceses da french touch – Daft Punk em primeiro lugar.

Para mim o AIR sempre foi e será uma referência sônica, na forma como resgatam o melhor do passado e propõem uma música resolutamente moderna.

NTM – “Seine Saint Denis Style” [1998]

Franceses são mundialmente famosos pelo vinho e pelo queijo. Poucos sabem que a França é também um dos maiores mercados para o hip-hop. Acho que algumas características de nossa língua, como a flexibilidade dos acentos tônicos, a mescla possível com outros idiomas ou o Verlan (inversão das ordens das sílabas) deixam o nosso rap mais rico até que o americano… Falei! ☺

Uma das bandas que mais me marcaram foi a NTM: 2 MCs eficientes e carismáticos rimando em cima de ótimas batidas cheias de swing, baseadas em samples geniais.

NTM é também, sem dúvida, uma das bandas mais impressionantes que já vi no palco. Neste vídeo ao vivo de 1998 é inacreditável ver o fogo que conseguem colocar com apenas 1 DJ e 2 microfones. Não surpreende, então, que o hip-hop alguns anos depois virasse o estilo mais escutado na França e no mundo, de longe.

Doc Gyneco – “Nirvana” [1996]

Nos anos 90 um outro rapper famoso era o Doc Gyneco, que se mostrou precursor em vários aspectos:

Primeiro, enquanto todos os outros rappers na época utilizavam samples, Doc Gyneco utilizava produções tocadas por instrumentistas, antecipando os problemas de direitos autorais que inviabilizam o sampling hoje, infelizmente. 

Segundo, mesmo sendo considerado “apenas um rapper” na época, ele claramente cantava melodias, como hoje fazem os rappers, naturalmente ou com a ajuda do Auto-Tune. 

Por fim, ele abordava temas diferentes para o rap da época, como nesta Nirvana, onde aborda a depressão e a tentação do suicídio. Até como artista cancelado ele foi precursor, alguns anos depois, quando apoiou o político de direita Nicolas Sarkozy. Um verdadeiro precursor, não disse?!

Stromae – “Papaoutai” [2013]

Radicado há 10 anos no Brasil, é comum para mim ouvir a pergunta “qual é o melhor artista francês da atualidade?”. A resposta é simples: é um belga!

Stromae representa para mim o exemplo perfeito do artista completo. Musicalmente, plasticamente, nas letras… Stromae tem uma visão holística de sua arte, e chegou próximo da perfeição com o disco Racine Carrée de 2013. Explodiu com tanta força que ainda não deu sequência à carreira estratosférica que construía ali, em poucos anos.

Só tenho uma palavra pro Stromae: VOLTA!

Miel de Montagne – “Le soleil danse” [2019]

Para terminar, a boa notícia é que a música francesa atual é mais rica do que nunca. Temos gênios (Chassol), grandes inovadores (Jacques), uma cena hip-hop brilhante e uma nova geração talentosíssima que assume sem problemas o nosso belo idioma. Difícil escolher um, mas para terminar esta viagem, recomendo para vocês Miel de Montagne com este Le Soleil Danse, uma canção perfeita pra viajar… até o fim da noite?

Ouça Viagem ao Fim da Noite logo abaixo!

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