Texto por: Ana Clara Martins
No último sábado, 28, o Rio de Janeiro foi palco de uma manifestação genuína da vastidão e pluralidade presentes na música brasileira — a terceira edição do Queremos! Festival. Rap, jazz, funk, samba, reggae, pop, entre outros diversos gêneros musicais marcaram o encontro de grandes artistas brasileiros na Marina da Glória, com o Cristo Redentor e o Morro do Pão de Açúcar compondo o cenário.
O line-up abarcou 13 artistas, como Gilberto Gil, Drik Barbosa, Emicida, Majur e Marina Sena, além da única atração internacional da noite: o saxofonista norte-americano Kamasi Washington, em sua terceira turnê pelo Brasil, preenchendo a noite carioca com o seu jazz em uma experiência cósmica.
A acessibilidade e a sustentabilidade foram preocupações do festival. Entre as ações sustentáveis, houve a transformação dos resíduos dos banheiros químicos em adubo e o direcionamento do lixo orgânico para compostagem.
Já no campo da acessibilidade, o Queremos! ofereceu iniciativas que deveriam ser prioridade em qualquer evento, como a interpretação para libras de todos os shows, área reservada de frente para os palcos e banheiros exclusivos.
Entretanto, oferecer acessibilidade vai muito além da estrutura física, envolvendo sobretudo as atitudes e treinamentos oferecidos aos trabalhadores. Nesse aspecto, o festival mostrou a falta de preparo para lidar com adversidades. Eu estava acompanhando um amigo que é PCD e, mesmo com a listagem de iniciativas que seriam oferecidas expostas em posts do Instagram, passamos por constrangimentos. No momento em que nos direcionamos para comprar o cartão de consumação, informaram que não existia uma fila prioritária, mesmo que essa informação constasse nas redes sociais do Queremos!. Outras situações problemáticas também ocorreram, como dificuldades para comprar e receber os lanches. Esperamos que, nas próximas edições, o festival consiga abordar a acessibilidade como uma real prioridade no treinamento de toda a sua equipe, para que todos consigam cultivar boas experiências e memórias.
Começando pontualmente às 13h30, o evento se estendeu até às 4 da manhã — sim, o público não parou de dançar! Os shows transitavam entre dois palcos: o Palco Verde e o Palco Rosa, situados nas duas extremidades da Marina da Glória.
Estreando o Palco Rosa, o trio curitibano Tuyo foi responsável por iniciar um dia memorável, com Jean no baixo e Lay e Lio nos vocais. A plateia não só dançou ao som dos hits como “Me Leva” e “Vidaloca”, mas também contemplou a nova faixa “Soledad” antes de seu lançamento, que ocorreu no dia 31/05. “Alô, Drik Barbosa!”, disse Lio antes da banda apresentar “Tem Dias”, música em parceria com Drik Barbosa, que deu continuidade ao festival no Palco Verde.
A cantora e compositora paulistana Drik Barbosa, ao lado de sua banda e duas dançarinas, deixou a plateia em êxtase ao som dos seus grandes sucessos. Entre eles, estavam “Liberdade”, “Espelho” e, é claro, o hit “Inconsequente”, em que a artista realizou um “dueto” com o público, deixando de cantar em algumas partes para ouvir as múltiplas vozes que ocupavam o local.
Logo em seguida, foi a vez do Palco Rosa receber a cantora e compositora baiana Luedji Luna, que propagou o encanto da sua voz enquanto o pôr-do-sol tomava conta da paisagem. O repertório estava repleto de canções do seu último disco “Bom Mesmo É Estar Debaixo D’Água” (2020), como “Tirania”, “Chororô” e “Ain’t I a Woman?”. Outros sucessos da carreira de Luedji também foram contemplados: “Essa aqui bombou nas redes, procurem saber!”, disse a artista antes de performar a faixa-título do álbum e o hit “Banho de Folhas”. Tudo isso em conjunto com o clima jazzístico proporcionado por sua fantástica banda, com direito a vários solos de teclado.
O pôr-do-sol já havia ocupado a Marina da Glória por completo quando a cantora e compositora baiana Majur subiu no Palco Verde, colocando a plateia para dançar ao som de faixas repletas de R&B e pop contagiantes. “Rainha de Copas”, “Náufrago” e “Enciéndeme” foram algumas das músicas performadas ao lado de seus dançarinos, dançarinas e da sua banda, que contribuíram para criar uma atmosfera que só um som cheio de groove consegue entregar, como foi observado no baixo encorpado da faixa “Última Dança”. O show de Majur também desencadeou momentos emocionantes, incluindo a performance da faixa “Seja o Que Quiser”, com somente sua voz e teclado, e “Andarilho”, na qual o público levantou as lanternas de seus celulares de um lado para o outro.
A malemolência de Céu comandou o início da noite do festival, fazendo a plateia gritar as letras dos seus sucessos, entre eles “Varanda Suspensa”, “Malemolência” e “Perfume do Invisível”. Também houve muita cantoria ao som das releituras “Deixa Acontecer” (Grupo Revelação), “Chega Mais” (Rita Lee) e “Criminal” (Fiona Apple), que compõem o disco mais recente da cantora e compositora paulistana, Um Gosto de Sol, lançado em 2021.
O macacão usado por Marina Sena só não brilhava mais do que a sua presença no Queremos!. A apresentação foi uma das mais aguardadas naquela noite pelo público, que pulou do início ao fim do seu repertório. “Voltei pra Mim”, “Me Toca” e o hit “Por Supuesto” foram algumas das faixas do seu primeiro disco em carreira solo, “De Primeira” (2021), que apareceram no show. Além disso, a mineira trocou conversas com a plateia em vários momentos, mostrando a sua simpatia e o seu carinho pela cidade do Rio de Janeiro.
Chegou a hora do público presenciar um dos maiores nomes do jazz contemporâneo. Kamasi Washington sobe no palco, vestindo sua bata reluzente, criando uma postura que se assemelha a de um mago — e podemos dizer que ele fez magia naquela noite. “Wow, you look so beautiful tonight” (Uau, vocês estão lindos nesta noite), “Muito muito bonito!”, diz o músico californiano segurando o seu sax tenor. A faixa “The Garden Path” inaugurou o repertório, e logo pode-se perceber a força que a banda do artista carrega. Cada músico brilhou impecavelmente: Patrice Queen no vocal, Brandon Coleman nas teclas, Miles Mosley no baixo, Antonio Austin e Ronald Bruner Jr nas baterias (sim, tocadas ao mesmo tempo!), Dontae Winslow no trompete e o pai de Kamasi, Rickey Washington, na flauta.
Em “Street Fighter Mas”, Kamasi convidou o pianista carioca Jonathan Ferr para subir no palco, deixando todos hipnotizados. Outras músicas apresentadas foram “Sun Kissed Child”, “Fists of Fury”, “Truth”, “Hub Tones” e “Mutha Afrika” (do disco Interstellar Black Space, de Brandon Coleman). Todos os músicos contaram com os seus impressionantes momentos de solo, mas um dos grandes destaques foi o baixista Miles Mosley. Com parte da madeira de seu instrumento retirada, dando espaço à escrita dos dizeres “Brasil Para Sempre”, Miles sublinhou a versatilidade do seu contrabaixo acústico, utilizando um arco e pedais de distorção. Ao longo de toda a apresentação, o público dançou e sorriu, emocionando até mesmo a poderosa voz de Patrice Queen, que chorou durante um break instrumental. Kamasi Washington fez história no palco do Queremos!
Depois foi a vez de Gilberto Gil lotar toda a extensão da Marina da Glória, entregando um show repleto de forró, com as suas famosas versões de “Xote das Meninas” (Luiz Gonzaga) e “Esperando na Janela” (Targino Gondim), e reggae, com as releituras de Bob Marley & The Wailers, como “Não Chore Mais (No, Woman no Cry)”, “Three Little Birds” e “Is This Love”. As composições atemporais do mestre não foram deixadas de lado: Gil mostrou todo o seu gingado ao sambar e rebolar na sua performance de “Aquele Abraço”, desafiou as nossas cordas vocais, que nos fizeram cantar intensamente “Tempo Rei”, nos emocionou ao som de “Esotérico”, dividindo os vocais com a sua neta, Flor Gil, entre outros diversos clássicos.
Após o show de Gil, o festival prestou homenagem a uma das maiores vozes e personalidades da música brasileira. Elza Soares estaria presente na terceira edição do Queremos!, mas o seu falecimento foi anunciado no dia 20 de janeiro deste ano. Todos aplaudiram e gritaram palavras de afeto direcionadas à mulher do fim do mundo.
Emicida abriu a madrugada intensa do festival com a sua banda e com os beats potentes de DJ Nyack, que realiza shows com o rapper há mais de 10 anos. O disco AmarElo (2019) esteve presente em peso no setlist, com “A Ordem Natural das Coisas” sendo o ponto de partida da apresentação. Em “Quem Tem Um Amigo (Tem Tudo)”, olhares marejados e vozes soluçadas marcaram os milhares de abraços entre pessoas da plateia. “Cê é louco, vou até meter um Roberto Carlos agora”, disse o paulistano ao inclinar o pedestal do microfone para cantar a faixa “Madagascar”. Na música “9nha / Eu Gosto Dela”, Drik Barbosa subiu no palco para fazer um dueto com o rapper, configurando um dos pontos altos do show.
Pulos, gritos pujantes e até mesmo rodinhas punks tomaram conta do público que assistiu Baco Exu do Blues. O rapper baiano mostrou um repertório composto principalmente por faixas do seu álbum mais recente, “QVVJFA?” (2022), como “4 da Manhã em Salvador”, “Samba in Paris” e “Dois Amores”. Dando continuidade às atrações da madrugada, o rapper Bk’ se apresentou ao lado do DJ e produtor musical JXNV$, com um setlist que abarcou várias músicas do seu último disco O Líder em Movimento (2020). Chegando ao final de um show marcante, Bk’ disse que não poderia ir embora sem cantar uma faixa específica. A música em questão era “KGL”, do seu antigo grupo Nectar Gang, contando com a participação do rapper Bril, que também integrava o conjunto.
Mesmo após duas horas da manhã, o Queremos! seguiu colocando o seu público para dançar fervorosamente. FBC & Vhoor rechearam o fim do festival com muito funk, tocando tanto os sucessos do disco BAILE (2021) quanto canções do álbum PADRIM (2019). Antes de apresentar a música “Polícia Covarde”, FBC ressaltou a violência cometida pela Polícia Rodoviária Federal (PRF) no caso Genivaldo, em que a vítima foi brutalmente assassinada pela abordagem policial. Com isso, a dupla sublinhou que a música sempre foi e sempre será uma via de protesto.
A noite foi finalizada pelo grupo baiano ÀTTØØXXÁ, com muito agito e percussões eletrizantes. “Chora Viola”, “Caixa Postal” e “Molhadinha” foram algumas das músicas que fecharam o festival com chave de ouro.