Quantos tipos de coragem cabem em cada um de nós em nossas existências individuais? Em seu segundo álbum, Dotan resgata a imagem de satélites para ilustrar a solidão, a sensação de estar à deriva e a busca por conexão. Satellites é um álbum dolorosamente honesto que retrata o artista em seu auge enquanto cantor e compositor, mas também em seus momentos mais vulneráveis e corajosos.

Dotan tem 34 anos, nasceu em Jerusalém e atualmente vive em Amsterdã. Seu álbum de estreia, 7 Layers, foi lançado em 2014 e quase imediatamente chegou ao segundo lugar no Top 100 da Holanda, onde eventualmente atingiu a marca multiplatina, além de ter recebido o disco de ouro na Bélgica. Em entrevista ao Mad Sound, ele fala sobre o que mudou em todo esse tempo.

“Quando eu fiz [o primeiro álbum] eu achava que sabia quem eu era. Hoje em dia eu acho que realmente sei, mas talvez daqui a sete anos eu olhe para trás e pense ‘Eu não fazia ideia’. E eu acho que a beleza é essa. Todos nós estamos tentando nos aproximar de quem nós realmente somos lá no fundo e eu acho que essa é uma jornada para a vida,” reflete.

Satellites detalha essa jornada de autodescobrimento vivida por Dotan de forma cronológica, de modo que mergulhar no álbum é embarcar em uma viagem no banco do carona de um veículo que ele mesmo está dirigindo. Como uma pessoa introvertida, Dotan encontra na música o único lugar onde consegue se expressar completamente, o que é expressado no refrão da faixa de abertura “No Words”. Durante toda a extensão do disco, o artista deixa que a música fale por ele e nos apresenta ao mais íntimo de quem ele descobriu ser ao longo dos anos. Muitas faixas passam por lugares sombrios e fazem referência a sentimentos de culpa, vergonha, solidão, abandono e questionamento, como é o caso da arrebatadora “Mercy”, uma das composições mais densas do álbum, que ganhou um videoclipe ainda mais impactante para ilustrar a busca por redenção.

“Foi muito difícil,” conta Dotan sobre o processo de composição do disco. “Eu sinto como se tivesse me tirado de uma situação através da escrita. Quando comecei a compor o álbum em janeiro de 2019 eu saía do estúdio nauseado todos os dias porque era muito avassalador. Era demais. Eu queria me abrir completamente e, para mim, a música sempre foi como uma terapia, pra ser sincero. Eu descobri desde muito jovem que esse era o meu caminho. Então fazer esse álbum tem sido muito catártico, mas também bastante doloroso, não vou mentir. Analisando tudo agora, definitivamente me ajudou a passar por muita coisa.”

2019 foi o ano em que o primeiro single do Satellites foi lançado. A forte e poderosa “Numb” recebeu discos de ouro na Holanda, Itália e Polônia, além de ter tido uma boa recepção no México e na Rússia. Começando de modo minimalista, como grande parte das composições do cantor, a canção adquire intensidade conforme Dotan imprime força e emoção nas palavras que estão sendo cantadas.

“[Numb] É sobre se sentir desconectado de tudo; dos seus sentimentos, do mundo, das pessoas ao seu redor, da música,” revela o cantor. “E no processo de fazer esse álbum eu me reconectei com tudo isso, o que é ótimo. Eu amo sentir várias coisas. Sempre há momentos que são como nuvens carregadas, mas eu me sinto feliz por estar ao menos experimentando eles ao invés de apenas me sentir completamente entorpecido.”

A busca por se reconectar é tema central do álbum e inspirou a doce faixa-título “Satellites”, onde Dotan canta no refrão: “Tudo o que somos são satélites / Estamos de passagem pelo escuro da noite / Nos aproximamos da escuridão / Tentamos encontrar o coração / E assistimos o modo como tudo colide”. Dotan afirma: “Quando me perguntam ‘O que você gostaria que as pessoas experimentassem quando ouvissem o álbum?’, eu respondo que eu espero que elas se sintam menos sozinhas.” A faixa ganhou um videoclipe apaixonante filmado em filme 16mm que retrata com delicadeza momentos românticos de um casal de mulheres.

Em setembro de 2019, poucos meses após a estreia de “Numb”, Dotan falou sobre sua sexualidade pela primeira vez. Em uma tocante publicação em seu Facebook, o cantor falou sobre o medo constante de tocar no assunto, além de experiências traumatizantes em sua infância. “Quando a mídia fazia fofocas sobre a minha sexualidade, aquilo fazia eu me sentir como se não fosse certo ser quem eu sou,” escreveu.

“Quando eu comecei minha carreira, minha gravadora me disse ‘não fale sobre isso’ e eu fiz o que eles me pediram porque eu queria fazer sucesso e não queria que isso interferisse na minha música,” relata Dotan para o Mad Sound. “Mas, pra nossa sorte, nós estamos progredindo e o caminho está se tornando mais aberto. Eu sempre penso que se eu puder ajudar pelo menos uma pessoa com qualquer pedaço do que eu faço, essa já é uma grande vitória pra mim. Então continuarei fazendo isso. E acho que também é por isso que eu escolho ter vídeos com representatividade. Porque eu acho que é importante mostrar que há uma diversidade de sabores e quando você nasce de determinado jeito, não deveria haver motivo algum para esconder isso.”

Uma das músicas de maior destaque no álbum, “Letting Go”, divide a narrativa até então dolorosa e cheia de dúvida que era contada por Dotan e apresenta um momento de clareza, onde o artista decide deixar para trás as coisas que não lhe agregam mais. O videoclipe impactante conta a história de um casal homoafetivo de boxeadores que desconta suas frustrações pessoais no ringue, não sendo capaz de conversar sobre a relação entre ambos. Quando perguntado se falar sobre sua sexualidade tinha afetado diretamente sua arte, Dotan responde:

“Mais do que eu imaginava. Esconder uma parte de você vai afetar várias outras coisas sobre você mesmo, e aceitar completamente quem você é acaba sendo muito libertador de várias maneiras. Não só na parte romântica, mas eu sinto que essa luz transpassa todo o resto. Eu acho que mudou porque me fez mais político, eu sinto que tenho batalhas maiores para lutar. Eu sinto que ainda existe muita injustiça no mundo quando se trata dos direitos LGBTQ+. Por exemplo, eu tive um disco de ouro na Polônia e um disco de platina na Rússia, e esses são dois países em que os direitos das pessoas LGBTQ+ estão sob ataque. Na Polônia, eles têm cerca de 10 áreas que eles chamam de ‘livres de LGBTQ+’, que são lugares onde você não tem permissão para andar se você faz parte da comunidade. Agora eu vejo como minha obrigação que ao ganhar um disco de ouro em um lugar desses eu use esse momento para me pronunciar e falar sobre o problema maior que está acontecendo lá.”

“Eu tento ser bastante aberto sobre isso, mesmo que eu não goste tanto de falar sobre minha vida pessoal,” completa. “Eu acho que é importante que as pessoas vejam representatividade, seja em videoclipes, em entrevistas, no meu Instagram, nas minhas redes sociais… Acho que é muito importante. Às vezes nós gostamos de pensar que porque nos rodeamos de pessoas mente-aberta significa que o mundo também é assim e, infelizmente, não é. Eu acho que as pessoas que vieram antes de mim lutaram por seus direitos e agora eu consigo me casar no meu país, por exemplo, então eu preciso dar seguimento à luta. Eu nunca achei que teria coragem de realmente lutar essa batalha também. Eu sempre pensei ‘Bom, eu vou me misturar’. Eu acho que me afetou de muitas formas, mas principalmente, acho que foi muito libertador e eu quero isso para todo mundo.”

As quatro últimas faixas do disco adotam progressivamente um tom mais sereno e esperançoso que o restante da narrativa, que começou com muita dor e dúvida, e agora acaba em aceitação e amor em meio ao caos. “Eu amaldiçoei minha pele / Não quero nunca me sentir igual a eles”, começa Dotan na última faixa “With You”. E o disco se encerra com o verso: “Se o mundo está pegando fogo / Eu só quero me deitar aqui com você”.

A grande força da música de Dotan mora exatamente no teor intimista de suas canções, sem grandes instrumentais ou bases sonoras elaboradas. O artista abre espaço essencialmente para que sua voz – que pode ser grave e forte ou suave e delicada – conte as histórias escritas e vividas por ele mesmo. Satellites é claramente uma obra que une o que há de mais profundamente pessoal, honesto e vulnerável em Dotan, dividindo com o mundo todas as coisas que antes ele guardava apenas consigo mesmo.

“Eu realmente espero que as pessoas tirem um tempo para ouvir o disco inteiro e embarcar nessa viagem comigo e ver como acontece essa progressão em direção ao final,” diz o artista. “E é isso o que eu realmente amo – eu amo discos, amo contar histórias do começo até o fim e eu sinto que às vezes nós perdemos isso porque queremos que tudo seja rápido e curto, e às vezes é bom só sentar e deixar que aquilo tome conta de você.”