O primeiro contato com o EP Taquetá Vol. 1 é como uma viagem no tempo que nos transporta para um clube de bossa nova no Brasil dos anos 1950. A cada nova reprodução é quase possível ver a fina névoa da fumaça dos cigarros, sentir o gosto do uísque e ouvir o bochicho dos homens de terno e as mulheres glamourosas. A precisão com que Rodrigo Alarcon, Ana Müller e Mariana Froes conseguem pintar esse cenário no imaginário do ouvinte é surpreendente, já que nenhum dos três viveu essa época. E eu também não.

Trazendo cinco faixas excelentes e que receberam todo o cuidado e dedicação por parte dos artistas, o novo projeto do selo Taquetá une essas três poderosas vozes da nova MPB em um resgate clássico da música brasileira dos anos 1950 e 1960. Com produção impecável de Niela Moura, o EP traz um pouco da assinatura pessoal de cada um dos três artistas para esse trabalho em conjunto, buscando uma linguagem nova. 

Cada um dos artistas vem de uma parte do Brasil e tem sua própria carreira independente. Rodrigo é de São Paulo e lançou seu primeiro álbum, Parte, em 2019, mesmo ano em que Ana, que é do Espírito Santo, também chegava com seu disco de estreia, Incompreensível. Já Mariana, que tem apenas 18 anos e é de Goiás, iniciou sua carreira conquistando um público avassalador nas redes sociais, onde postava covers de outros artistas e algumas composições próprias. Ela e Rodrigo colaboraram no single “15b”, e seu primeiro EP, Nebulosa, chegou em 2020.

Em entrevista ao Mad Sound, o trio conversa sobre o processo de composição e gravação do disco, que busca unir as principais referências de cada um com originalidade e harmonia. “A gente já tem uma bagagem dessa MPB meio clássica, de voz e violão,” conta Ana. “A nossa música sempre foi mais simplista, mas não simplória. Então a diferença para esse trabalho foi que a Niela conseguiu pegar as coisas que estavam dentro da nossa cabeça e transformar tudo, tornar tudo muito grandioso. A gente sempre fez coisas bem singelas, é algo que compartilhamos entre nós três, e aí a Niela veio e falou ‘Não, a gente vai fazer um negócio grande’. E ficou genial, ficou maravilhoso. Os músicos são músicos excelentes, muito virtuosos. São músicos de Academia, então você não precisa falar nada porque eles sabem tocar qualquer coisa.”

Nas palavras de Ana, todas as músicas foram feitas com “muita vontade, muito desejo, muito empenho, e histórias reais também”. O carinho dos três artistas e a dedicação investida em cada faixa torna quase impossível escolher uma favorita, sentimento que é compartilhado por eles. Mari relata que sente como se as músicas fossem as “filhinhas” dos três, mas que gosta bastante de “Às Vezes Bate Uma Saudade”, canção que abre o disco e que é descrita por Ana como algo que foge um pouco do padrão do trio, indo para um lado mais R&B. Rodrigo é quem dá voz à doce e contemplativa “Passageiro” e ressalta que suas favoritas mudam sempre, mas escolhe a apaixonante “Enquanto A Chuva Não Vem” – uma música que foi escrita como um samba, mas se tornou algo meio Laços de Família, segundo Ana.

Encerrando o projeto chega a arrebatadora “Segunda”, trazendo uma linha de baixo poderosa e narrando o cotidiano esmagador de se viver em uma cidade grande, mas um dos grandes destaques do EP é “Carta Que Não Diz”, guiada pela voz forte de Mariana. “‘Carta Que Não Diz’ é uma música muito importante pra mim porque é uma música muito real, de algo que aconteceu mesmo,” conta Ana. “Esse questionamento de ‘Por que você nunca me amou?’, essa coisa que perpassa pela vida de todo mundo. Todo mundo em algum momento às quatro horas da manhã vai abrir o olho e pensar ‘Por que essa pessoa não me amou, cara? O que eu fiz?’.

Vindos de cantos diferentes do país, cada um dos três músicos têm suas próprias referências e histórias com a música. Rodrigo relata que seu pai e sua mãe não são pessoas muito musicais, então grande parte de suas referências na música veio de suas avós. “Muito do que eu ganhava das minhas avós eram CDs antigos delas, então eu ganhei Nat King Cole, ganhei Frank Sinatra, ganhei Orlando Silva, Nelson Rodrigues, muitos discos de bolero, e tudo isso ficou muito impresso,” conta. “Foi muito legal quando a gente foi chegando no resultado do disco e eu enxerguei o que minhas avós tinham me apresentado ali de uma forma muito natural. Não foi pensando ‘vamos fazer um disco desse jeito’. As músicas aconteceram, caíram pra essa roupagem e na hora que eu vi eu falei ‘Cara, minhas avós vão ficar muito orgulhosas de mim porque tudo que elas me apresentaram tá muito claro em inspiração nesse disco’.

Ana, por outro lado, teve muito contato com a música na parte materna de sua família, onde ela afirma que “todo mundo canta, todo mundo compõe”. Ela afirma ter fortes referências na música caipira, mas também na MPB clássica por parte de sua mãe, que foi quem lhe apresentou Chico Buarque, Caetano Veloso e João Gilberto

Esses grandes nomes também são citados por Mariana, que também recebeu outras influências por parte de pai. “Eu tenho referências muito diferentes umas das outras,” conta. “A minha mãe escuta muita MPB, bossa nova, samba, então eu sempre ouvi no carro Gilberto Gil, Chico Buarque, Caetano Veloso, Maria Bethânia, e nas festas de família – minha família é do Ceará – tem muito samba, muito pagode. E ao mesmo tempo, por parte de pai, ele me introduziu ao rock, rock alternativo, rock gótico, então é uma bagunça que tem aqui, mas que acaba fazendo sentido nas minhas músicas.”

A menção ao rock gótico desperta comentários de nós quatro sobre algo que todos tivemos (e ainda temos) em comum: a fase emo. “A gente teve essa época emo, né? Isso ninguém nunca vai tirar da gente,” afirma Ana. “Eu tinha uma banda e meu sonho era ir pro Covernation da MTV de Fall Out Boy porque eu era baixista e queria me vestir igual ao Pete Wentz,” revela Rodrigo. Quando é sugerido que os três poderiam fazer algo juntos voltado para esse gênero musical, Rodrigo brinca: “Já pensou? Taquetá Vol. 2 feat. Fresno?”

Tanto Ana quanto Rodrigo concordam que parte do segredo do sucesso desse projeto se deve à cumplicidade entre todos os envolvidos e ao fato deles serem “três artistas que se gostam e se respeitam”, mesmo que cada um venha de origens diferentes e tenha seu próprio modo de fazer música. “A gente tem muito respeito um pelo outro, mas não se resume só à composição,” afirma Ana. “A Mari, por exemplo, tem uma interpretação que transforma a música. A gente sempre fala, enquanto compositor, que a música não é nossa, mas nesse trabalho específico a música realmente não é nossa, não é de ninguém. É de todo mundo. Porque todo mundo deu um pedaço de si em cada música. Não só nós três, mas cada músico que participou – a Niela enquanto produtora do disco, o [Pedro] Kurtz na parte executiva – todo mundo se deu para esse trabalho. Acho que é por isso que ele é tão harmônico. Foi tudo feito com muito respeito.”

A sintonia do trio no estúdio também é peça-chave para um projeto como esse, e pode ser conferida em primeira mão nos videoclipes oficiais de três das cinco faixas, divulgados um em cada canal do YouTube de cada artista. “A música no estúdio se resume a um instante. São instantes gravados ali e a energia do estúdio influencia muito em como essas canções vão soar na orelha das pessoas. E a gente se dá muito bem, a gente respeita muito o outro,” reforça Rodrigo.

A excelência do Taquetá Vol. 1 não é recebida com carinho e alegria só por quem ouve. O projeto também tem um significado maior para os três artistas, especialmente no cenário atual brasileiro. “É muito bom ter esse espaço, poder falar de música independente porque não está sendo fácil estar vivo e ser artista independente nesse Brasil de Bolsonaro,” desabafa Rodrigo. “A gente se salvou nisso aqui, durante esse período, porque foi o que fez a gente mover a cabeça e gastar todas essas ansiedades e coisas que estamos vivendo – porque não tá fácil estar vivo -, em um projeto que tem um porquê, que extrapola a gente. A gente fez isso, foi muito legal, mas receber um feedback torna as coisas mais tranquilas no meio de tudo isso.”

Em meio ao caos, ao luto e à tristeza, o trabalho de Rodrigo Alarcon, Ana Müller e Mariana Froes traz um sopro singelo de suavidade mais que necessário e oferece um escape da realidade de 2021 para um lugar parado no tempo, mesmo que o tempo em questão já trouxesse os primeiros indícios de muito do que nos assombra no cenário político hoje. Na voz de três músicos tão jovens e promissores, a clássica MPB renasce com força total para nos lembrar da força, a beleza e a eterna resistência da música brasileira.