Em Habilidades Extraordinárias, Tulipa Ruiz celebra o agora e a capacidade de sobreviver em meio às adversidades – e também as belezas – da vida. O quinto disco de estúdio da cantora é seu primeiro lançamento em sete anos e chegou em um dia de primavera; não por coincidência, mas sim por também representar esse renascimento e desabrochar, tanto de um mundo pós-pandêmico quanto da artista que tem nome de flor.

Para seu projeto de retorno, Tulipa escolheu se afastar um pouco das telas e dos computadores e decidiu retornar ao analógico, gravando todo o trabalho de estúdio na fita, contando mais uma vez com a produção de seu irmão, Gustavo Ruiz. O resultado é a música viva, vibrante e transitória, mesclando ritmos, gêneros e experimentações, unindo o melhor da música brasileira também com muito da música negra.

Segundo a cantora, a gravação do álbum foi algo que exigiu “muita presença durante este contemporâneo tão disperso”. Dar um passo para trás do tecnológico e abraçar o orgânico trouxe também certa despreocupação com o algoritmo das redes, que tem sido grande aliado e também grande antagonista de muitos artistas atualmente.

A faixa de abertura, “Samaúma”, é um ótimo retrato do Habilidades Extraordinárias e o que o disco representa. Com 5 minutos de duração, a canção não é palatável para redes como o TikTok, mas apresenta uma imensa riqueza de execução em uma mistura de soul e funk enquanto pinta o retrato de um mergulho nas sensações encontradas na natureza. Visitar uma samaúma, tomar um banho de cachoeira e massagear a coluna “na parte mais aguda de uma pedra molhada” são ações que exigem presença e desligamento do restante do mundo – um gosto da vida longe dos aparelhos tecnológicos.

A circular e serpeante “Novelos” busca mais uma forma de escape do contemporâneo, mesmo que o destino seja a lua. Entre gritos que extravasam a frustração com o presente e beiram ao som animalesco de uma ave, Tulipa evoca mais uma vez seu amor e veneração pela natureza com o desabafo: “Não aguento mais essa gente se achando gente diferente da gente, diferentes dos rios, diferente dos ventos, diferente dos animais”.

Liricamente, Habilidades Extraordinárias também guarda seus segredos e suas pérolas, muitas vezes beirando à poesia, e usando a linguagem de forma inteligente e afiada. A intrigante “Pluma Black”, com participação de Negro Leo, é uma obra de aliteração brincando com palavras que evidenciam a letra L e o modo como o som colide com outras consoantes. Um pouco da técnica se repete logo a seguir, em “Kamikaze Total”, que busca o bruto do R em contraste com a forma mole como o L se desfaz na boca.

As críticas ao contemporâneo seguem firme na raivosa e provocante “Vou Te Botar No Pau”, com guitarras arranhadas e vocais mais roucos, enquanto Tulipa Ruiz expõe uma série de explorações e descasos com o trabalhador moderno. Mesmo em meio às reflexões do cotidiano, porém, ainda sobra espaço para dançar, como é o caso da agitada “Não Pira”, com Jonas Sa, que mais uma vez busca a natureza como forma de aterramento no presente e em seguida dispara: “Não é seu celular que vai te dar o tom / O lance é dentro de você.”

Encerrando o disco, Tulipa Ruiz repete sua parceria com João Donato no samba sintetizado de “O Recado da Flor”, fechando a viagem pelas faixas com um grande respiro, uma verdadeira brisa suave de primavera, e bastante leveza. Em sua totalidade, Habilidades Extraordinárias guarda detalhes e belezas que, assim como na imensidão da natureza, se escondem em meio a uma riqueza de arranjos e lirismos. Faz-se necessário, então, sempre um novo mergulho, sem medo, e exigindo sempre a presença atenta do ouvinte, assim como foi necessária a entrega completa dos músicos e produtores. Consuma longe de telas, sem fones de ouvido, e, se possível, em companhia da luz do sol.

LEIA TAMBÉM: Maglore traz mensagem de esperança para os dias difíceis em ‘V’