Demi Lovato nunca precisou de muito esforço para ser pop rock. Na verdade, toda a primeira parte de sua carreira foi voltada naturalmente para esse gênero, desde seu primeiro álbum solo, Don’t Forget (2008), até grandes hits do disco seguinte, como “Remember December” e a faixa-título, “Here We Go Again”.

Essa inclinação natural para as guitarras, porém, pode ter ficado esquecida para o público geral que só acompanhou a fase de diva pop pós-”Skyscraper”. O tratamento em uma clínica de reabilitação aos 18 anos e a tentativa de limpar a imagem ainda atrelada à de estrela mirim da Disney empurraram Demi para um pedestal de “exemplo de superação” e “estrela pop modelo”, onde seus erros e falhas do passado eram humanizados, mas não podiam ser repetidos.

Nos anos seguintes vieram sucessos como “Give Your Heart A Break”, “Heart Attack”, “Cool For The Summer” e “Sorry Not Sorry”. A imagem de diva pop vendia bem, mas não convencia muito e nem condizia com quem a própria Demi era de verdade. Posteriormente, a artista olharia para trás e admitiria uma falsa confiança que estava tentando ostentar nessa época de sua carreira, usando roupas curtas e mostrando bastante o corpo porque achava que era assim que cantoras pop precisavam se comportar se quisessem a atenção da mídia e da crítica. Também era uma maneira de garantir ao público que seus problemas com autoimagem e transtornos alimentares tinham ficado no passado, o que não era verdade.

Demi Lovato em sessão de fotos do álbum 'Confident' (2015). Créditos: Divulgação
Demi Lovato em sessão de fotos do álbum ‘Confident’ (2015). Créditos: Divulgação

Após uma overdose quase fatal em 2018, Demi Lovato passou a rever toda a imagem pública que tinha construído nos últimos anos e o quão frágil era a armadura do falso empoderamento. Depois de perceber que tinha passado anos fingindo ser alguém que não era, a cantora (que agora se entende como pessoa não-binária e se sente confortável com pronomes neutros e femininos) entrou em um novo processo profundo de autoconhecimento e decidiu retomar as rédeas de sua identidade também na música.

A mudança radical de imagem veio com o álbum de 2022, HOLY FVCK. Desde o início, a publicidade ao redor do disco girou em torno desse retorno de Demi ao rock e suas influências no metal, dando a entender que o álbum seria um projeto pesado influenciado por esses gêneros musicais.

“Pesado” acaba sendo uma palavra forte demais. Algumas músicas são, de fato, mais carregadas nas guitarras e bateria, ostentando também vocais mais agressivos, como “FREAK” e “EAT ME”, mas o que mais se ouve no álbum são ecos dos dois primeiros discos da carreira, como nos singles “SKIN OF MY TEETH” e “SUBSTANCE” – duas faixas de pop rock mais próximas sonoramente de “La La Land” do que de qualquer música de metal.

A estrutura das músicas também permanece com os dois pés bem plantados na música pop. Lovato, que por muitos anos teve como marca registrada os vocais potentes, continuou insistindo em versos melódicos, refrões-chiclete e notas altas que beiram o estridente, mesmo sem necessidade. Essa técnica vocal se popularizou na música pop devido ao alcance de divas como Christina Aguilera e Mariah Carey, mas dentro do rock os vocais pedem uma abordagem mais visceral e agressiva, não tão limpa e perfeccionista. Algumas vezes Lovato acerta, mas em outras ela erra a marca, como é o caso de “29”.

Em meio a erros e acertos, Demi encontrou em suas inclinações para o rock uma rebeldia característica do gênero para abordar mais abertamente temas sobre os quais ela falava de maneira mais velada nas músicas pop. Em HOLY FVCK ela usa metáforas e expressões religiosas para falar de sexo, masturbação feminina e a luta contra a dependência química, se colocando como uma figura oposta à do “sagrado”, abraçando o mundano e o profano que fazem parte de si sem culpa ou julgamento. Clichê, por vezes meio batido e até estereotipado, mas fazia sentido para a artista.

Em entrevista à Vogue, Demi explica por que decidiu retomar as referências na música pesada e como a sonoridade acabou se intercalando naturalmente com a recorrência de temas religiosos ao longo do álbum. “Eu queria retomar meu poder. Eu cresci na igreja como cristã e tinha certa raiva em relação a isso. Sendo uma pessoa queer, eu sentia que era mal-compreendida. Também houve um elemento de opressão sexual que eu vivenciei e que veio da igreja”, explica. Em HOLY FVCK ela retoma o controle e a autonomia de sua própria sexualidade e explora esse assunto de maneira mais natural e sem censuras.

Demi Lovato em foto promocional de "SKIN OF MY TEETH". Créditos: Reprodução/Facebook
Demi Lovato em foto promocional de “SKIN OF MY TEETH”. Créditos: Reprodução/Facebook

Agora que se sente mais confortável com suas inclinações para o rock, Demi Lovato poderia ter decidido apenas enterrar o passado pop e começar de novo, mas não foi essa a abordagem escolhida. Durante os shows da Holy Fvck Tour, Lovato começou a introduzir novas versões de seus sucessos pop e na última sexta-feira, 15, a cantora lançou o álbum REVAMPED, com releituras rock de 10 dos maiores hits de sua carreira.

Parecia uma estratégia desnecessária no início, mas o resultado final ficou bastante interessante. É impossível transformar músicas pop em faixas genuínas de rock, mas as releituras presentes no REVAMPED mostram um trabalho dedicado de produção que extraiu o melhor de cada faixa e elevou seu potencial dentro dos ajustes permitidos. O single EDM “Neon Lights”, por exemplo, encontrou um novo lugar bastante confortável com a participação de The Maine, enquanto “Give Your Heart Break” virou um dueto de pop punk romântico com a adição dos vocais de Bert McCracken, do The Used.

Algumas faixas não precisaram de tanto trabalho, como “Don’t Forget” e “La La Land”, que recebeu a participação habilidosa da guitarrista Nita Strauss, mas não ficou muito diferente da original na prática. Outras ainda não conseguem se passar por rock, mas ganharam uma roupagem mais orgânica e interessante, como “Skyscraper” e “Sorry Not Sorry”, trazendo um solo de guitarra do lendário Slash.

No ao vivo, o público pode não perceber com tanta clareza as nuances entre as novas versões e as originais, mas nas gravações de estúdio o resultado é bastante surpreendente. A decisão de fazer releituras de seus maiores sucessos não só mostra um respeito aos fãs e à própria discografia, mas também uma vontade de Demi ressignificar pontos importantes da carreira, transformando essas músicas em algo que seja mais autêntico para si enquanto artista.

Menos que uma tentativa de reinventar o rock, REVAMPED existe mais como um projeto que sinaliza o potencial escondido em revisitar discografias longas de um artista e retrabalhar faixas queridinhas do público de maneira que converse com o momento atual da carreira. Mesmo sendo apenas um projeto de releituras, o álbum já mostra um amadurecimento musical maior em relação ao HOLY FVCK, assim como o novo single “SWINE”, que tem uma construção diferente e mais pertencente à música pesada.

A repentina inclinação de artistas de outros gêneros para influências do rock (como a própria Demi e Machine Gun Kelly) também levanta questionamentos importantes sobre a apropriação da cultura underground pelos artistas mainstream, fazendo com que a música “mais pesada” ganhe espaço com artistas pop e jogue a cena alternativa cada vez mais para escanteio. Por isso é interessante observar a abordagem orgânica de Lovato com seus sucessos antigos, mas não colocá-la como uma figura representativa do rock na música atual.

E mesmo que Demi Lovato nunca atravesse, de fato, a linha entre o pop e o rock, talvez existam maneiras inteligentes de ocupar esse lugar do meio, desde que de maneira consciente.

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