Um tapete rosa choque de estrelas prateadas nos conduz pela entrada do Museu da Imagem e do Som (MIS), onde somos recebidos com imagens do espaço sideral e o manequim de uma Rita Lee vestida em seu lendário macacão estrelado da década de 1970. É uma Rita que veio do espaço para revolucionar a humanidade com seu talento, sua genialidade e sua luta incansável pelo direito de liberdade.

A trajetória de Rita Lee e seu extraordinário legado, não só para a arte brasileira, mas também para a história do país, são tema da exposição do MIS que fica em cartaz até 28 de novembro. Localizada em São Paulo, a exposição contou com o envolvimento da própria Rita – que ajudou na montagem através do FaceTime – teve curadoria de seu filho, João Lee, cenografia assinada pelo figurinista e amigo de longa data Chico Spinoza, e direção artística de Guilherme Samora, que falou ao Mad Sound sobre a importância de reunir as inúmeras facetas de Rita Lee em um único lugar.

“Eu tenho uma certeza absoluta de que a Rita é a maior artista do Universo,” afirma. “Eu acho ela muito completa, muito complexa. Uma mulher que fez o que ela fez na época em que ela fez… Eu acho que é necessário que isso esteja à mostra. A Rita falava de muita coisa que a gente ainda está debatendo hoje e ela falava de uma maneira muito clara e genial. Tem algumas respostas que a gente procura e eu falo que basta ouvir as músicas dela e você vai achar. São segredos da vida.”

As várias faces de Rita Lee são exploradas ao longo de 18 áreas temáticas seguindo os passos da Rainha do Rock desde a infância na Vila Mariana até as causas sociais apoiadas pela artista e ativista ao longo de sua vida. Aqueles que se aventurarem pelas alas do Museu da Imagem e do Som irão se deparar com a história de toda uma existência contada de forma viva e sensorial através de uma infinitude de figurinos originais intactos, fotos e itens de arquivo pessoal e uma explosão de cores, texturas e sons que buscam eternizar a memória de uma artista que é “muito à frente do tempo”, como pontua Guilherme.

Uma mulher à frente do tempo

Traje de sete cabeças usado por Rita Lee.

Seguindo o tapete de estrelas na entrada do MIS, saímos do espaço sideral e aterrisamos no porão do casarão dos pais de Rita Lee, onde ela passava a maior parte do tempo com as irmãs Mary e Virginia “fazendo teatrinhos” e onde descobriu sua primeira paixão: Peter Pan

O toque teatral e a fantasia futuramente seriam parte essencial das performances da artista, que fez questão de homenagear as paixões da infância já na vida adulta. Subindo as escadas do porão, somos surpreendidos por um manequim da própria Rita vestida de Peter Pan que passa voando acima de nossas cabeças, representando seus shows do final da década de 80, onde ela ficava suspensa sem nenhum equipamento de segurança.

A criatividade ilimitada e a faísca inocente do entusiasmo infantil acompanharam Rita Lee ao longo de toda a sua vida e se traduziram na irreverência de suas performances, seus costumes e suas roupas memoráveis. Ao entrar em uma sala de brilhantes paredes amarelas, nos deparamos com uma ala que representa os anos 60, onde estão expostos vários figurinos de Rita durante sua época nos Mutantes, como o icônico vestido de noiva usado no show no Maracanãzinho, em 68, e sua clássica roupa de bruxa, usada quando o trio ainda se chamava “Os Bruxos”.

Na mesma sala se encontra uma impressionante representação em tamanho real da capa de seu disco Fruto Proibido (1975), com a banda Tutti Frutti. Em uma época em que o rock era considerado “coisa de homem”, Rita Lee estabeleceu seu lugar e revolucionou padrões de gênero ao subverter os comentários que menosprezavam a presença do sexo feminino nesse ambiente predominantemente agressivo e masculino. Pegando seu “útero” e seus “ovários”, a artista fez questão de criar um disco “cor de rosa, cheio de temas femininos” e suavizar a carranca grosseira do rock, trazendo um toque de delicadeza e ao mesmo tempo uma grande onda de rebeldia, provando que o rock também é coisa de mulher.

Representação da capa de ‘Fruto Proibido’ (1975)

Abraçar a feminilidade em um gênero musical formado de tantos estereótipos masculinos foi apenas um dos inúmeros atos de rebelião de Rita Lee que revolucionaram o cenário brasileiro. Sua sede de justiça e seu forte posicionamento progressista ameaçavam a ordem estabelecida no Brasil pelo militarismo dos anos 60. Depois de passarmos por paredes felpudas cor-de-rosa e figurinos históricos de muito brilho e cores vibrantes, somos conduzidos até um corredor estreito, sufocante e mal-iluminado, representando os tempos claustrofóbicos da ditadura militar brasileira, que resultaram na prisão da artista enquanto ela estava grávida. 

Rita foi a artista com o maior número de músicas proibidas durante a ditadura. Em uma das paredes se encontram imagens de documentos oficiais da época, que decretaram a censura de várias de suas canções e as letras originais de músicas como “Banho de Espuma” e “Cor de Rosa Choque”, que teve 25 versões diferentes. Do outro lado do corredor estão expostas 3 cartas originais, escritas à mão, decorrentes do período em que Rita passou na prisão. 

Uma delas traz o real motivo pelo qual a artista foi presa: o apelo desesperado da mãe de João Bosco Galvão, morto a tiros por um policial militar durante um show de Rita Lee, sua maior inspiração, que ele frequentava com o namorado. Na carta, Nair Vieira Navarro suplica “em nome das 5 chagas de N. S. Jesus Cristo” para que Rita, que testemunhou o crime, contasse a verdade. 

As outras duas cartas são registros emocionantes de uma mensagem de força escrita pela mãe de Rita Lee e quatro páginas completas de uma carta escrita pela própria Rita na prisão para Roberto de Carvalho, pai do filho que estava para nascer. Roberto e Rita casaram-se em 1976 e seguem juntos atualmente, 45 anos depois. O relacionamento dos dois ganhou uma ala especial na exposição, onde podemos espiar fotos do casal e a letra censurada de uma de suas composições através de buracos de fechadura nas paredes.

Sessão dedicada ao relacionamento de Rita Lee e Roberto de Carvalho.

Saindo do corredor sufocante que representa as grades do regime militar, a exposição se abre em uma ala que tira nosso fôlego de forma positiva, nos lembrando que ainda existe pulsão de vida após períodos intensos de morte. Nos deparamos com uma montagem em tamanho real do palco gigantesco da turnê de 1982/83, ou O Circo, como ficou conhecida. Com luzes coloridas pendendo do teto como a lona de um picadeiro, palco giratório e uma réplica do inesquecível par de pernas gigante, o cenário traz mais manequins vestidos com os figurinos oficiais de Rita em uma explosão de cores vivas, luzes brilhantes, e alegria.

Ao final do passeio pelo primeiro andar da exposição, os fãs podem escrever bilhetes que depois serão entregues diretamente à Rita Lee. Como atração de encerramento dessa primeira parte estão expostos em uma parede diversos cadernos de composições que a artista preencheu ao lado da vida, inclusive um tocante poema escrito após a morte de Elis Regina. Em uma antiga caderneta de arame, está exposta na letra cursiva de Rita Lee o rascunho original da letra de “Barriga da Mamãe”, que mesmo escrita nos anos 80, traz uma mensagem assustadoramente atual:

Ai que pavor quando leio o jornal
É só desgraça
É só baixo astral
Meu diploma pendurado na porta
É o quadro de uma natureza morta

Quero voltar invisível
Para dentro da barriga da mamãe

Rita Lee, “Barriga de Mamãe”

A maior artista do Universo

Palco da turnê ‘O Circo’.

O segundo andar da exposição é menor e mais contemplativo, não trazendo tantas surpresas ou fortes estímulos emocionais. A ala mais imersiva do passeio fica por conta de uma sala onde foram instauradas nove caixas de som para proporcionar uma experiência de imersão auditiva, onde é possível ouvir o som das músicas de Rita Lee circulando ao nosso redor em um movimento de 360º. É como mergulhar de cabeça diretamente em suas músicas e em seu universo criativo.

Outra sala, um pouco maior, é dedicada às bandeiras que Rita defendeu ao longo da vida, como a causa animal e as crianças. Também podem ser contemplados os diversos troféus e medalhas recebidos pela artista, assim como fotos de arquivo pessoal e cartas recebidas de amigos e grandes personalidades, como um bilhete escrito por Hebe Camargo.

O talento de Rita Lee para o desenho e a pintura também recebeu um espaço dedicado totalmente às ilustrações impecáveis que a artista fez de seus maiores ídolos. São expostos retratos originais feitos a lápis de cada um dos 4 Beatles e uma variedade de quadros de personalidades como Fernanda Montenegro, Carmen Miranda, Elvis Presley, entre vários outros – todos pintados com muitas cores e formas geométricas, através de um olhar bem “Rita Lee”.

A maior riqueza encontrada na exposição em homenagem à Rainha do Rock é o caráter analógico de sua disposição. A maioria dos itens que preenchem as salas são do acervo pessoal de Rita Lee e vibram com décadas de História, paixão e autenticidade. Visitar as várias fases da vida de um dos maiores nomes do nosso país é um grande privilégio que se transforma em pura magia durante as horas de imersão (tão profunda que nem se sente o tempo passar).

Depois da viagem por esse planeta particular de Rita Lee, se torna claro o tema central da exposição, descrito perfeitamente por Guilherme Samoura: “A Rita é muito multifacetada, mas eu acho que existe um denominador comum em todas essas Ritas: a liberdade. A liberdade, a alegria e o amor. A Rita sempre foi uma rebelde com amor, então eu acho que é isso que a gente mostra aqui. Uma libertária em tudo, no melhor sentido da palavra, com todo o amor do mundo. Eu acho que ela nos convida e sempre nos convidou a nos libertarmos. Cada um que ouvir uma música vai entender qual é o seu lado que precisa ser liberto.” 

*A exposição vai até o dia 28 de novembro e fica aberta de terça-feira a domingo, das 10h às 18h. Os ingressos custam R$ 50 (inteira) e R$ 25 (meia) na bilheteria MIS e online no site da Ingresso Rápido. É possível visitar a exposição gratuitamente nas manhãs de terça-feira a sexta-feira, às 10h, 10h30, 11h e 11h30.

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