Em São Paulo, há um lugar que resume impressionantemente bem o caos enclausurado que é a mais populosa metrópole da América Latina. Sob a principal avenida da capital, está a ligação entre as linhas 2-Verde e 4-Amarela do metrô, restrita pelo espaço da estação Consolação à estação Paulista. Religiosamente, às seis da manhã e às seis da tarde, uma manada de humanos passa por ali, do trabalho para a casa, da casa para a faculdade, da faculdade para sabe-se onde. São protagonistas das próprias vidas, mas também personagens de “Boi Navegador”, faixa que abre O Desmanche, segundo e recém-lançado disco de Craca e Dani Nega.
“Não quisemos falar sobre São Paulo, mas falamos a partir de São Paulo sobre um contexto que é nacional”, explica Felipe Julián, músico, produtor e artista visual que assume o nome de Craca no duo de rap eletrônico. “As letras citam coisas muito objetivas da cidade”, diz, usando como exemplo o “povo boiada no transporte público” e o “almofadinha” da canção de abertura. “É o [João] Dória [ex-prefeito de São Paulo].”
E o recorte de O Desmanche não é só físico, mas temporal, característica presente até mesmo no nome do trabalho. “A gente poderia ter escrito ‘2016’, ‘2017’ ou ‘2018’, mas preferimos ‘Desmanche’. Hoje, tem se falado muito sobre o ‘desmonte’ da cultura, da saúde, da educação, dos direitos.” E a escolha do termo foi pensada para afiar ainda mais a crítica do LP. “Desmanche é essa coisa ilegal, essa ideia do desmanchar veículos e vender as peças roubadas para o mercado negro. Faz sentido porque achamos que todo esse processo de ‘desmonte’ é ilegítimo.”
O contemporâneo fala de maneira sutil ao longo de todo o álbum, mas grita em “Quando Voltarão?”, letra que escancara o brutal racismo brasileiro ao citar nomes de 18 pessoas negras assassinadas nos últimos anos. Aparecem casos como os de Marielle Franco, Luana Barbosa, Daniel Marques, Luiz Carlos Ruas e Maria Eduarda, que apesar de extrema exposição na mídia, tiveram rápido esquecimento popular. “A Dani escreveu esse texto na noite após a morte da Marielle, que ela passou em claro, angustiada.”
De inspirações cotidianas como essa, aconteceu o processo criativo do disco, que, segundo Craca, foi turbulento. “A gente começou a produzir no final de dezembro. Mas tivemos muitas interrupções. Toda hora a gente tinha que cancelar gravação, mudar as coisas — o álbum foi feito entre uma manifestação e outra.”
E o tal processo englobou um universo que foi além da dupla, já que o disco contou com a participação de nove artistas: o trio Clarianas, Luedji Luna, Roberta Estrela D’Alva, Juçara Marçal, Sandra X, Graça Cunha e Nanny Soul. Nomes que vieram da escolha de Dani Nega, que assina as letras das faixas e é responsável pelos vocais. “Eu não me meti muito porque entendi que essa configuração [das colaborações] estava vindo dela. Mas são todas pessoas que giram em torno da militância da mulher negra. São mulheres que representam uma relevância na própria área”, explica.
O Desmanche é o sucessor de Craca, Dani Nega e o Dispositivo Tralha (2016), e, com participações, temáticas afiadas, batidas brutas e versos honestos, resume bem o caos enclausurado que é o Brasil em 2018. Ouça abaixo.