No dia 20 de abril, ÀIYÉ lançou seu novo álbum, Transes. O projeto solo de Larissa Conforto dá um grande passo além do aclamado e político Gratitrevas (2020), mostrando uma fase mais descontraída e experimental da artista, misturando “santos e synths” em um disco profundamente espiritual e também deliciosamente mundano.
Em Transes, ÀIYÉ canta sobre e para seus orixás de uma maneira que escapa à tradição religiosa, abrindo espaço para a pista de dança dentro das referências ao terreiro, popularizando temas sagrados e trazendo-os para a vivência do dia-a-dia. Essa ponte entre o sagrado e o profano transforma o álbum em um “disco de encruzilhada”, como ela mesma define na faixa de introdução.
“Transes tem a ver com o transitar, o estar entre,” explica ÀIYÉ em entrevista ao Mad Sound. “Tem a ver com esse lugar da encruzilhada, que é um ponto de força que une, um ponto onde vários caminhos se cruzam, onde você tem opção de escolher vários caminhos. Transes por conta dos corpos em transe, por conta das viagens de expansão de consciência, por conta desse lugar da vivência de terreiro mesmo que tem muito a ver com com o transitar das dimensões, como observar a realidade sob perspectivas variadas.”
O conceito desse transitar entre universos pode ser visto também na capa do disco, rica e criativa, que uniu uma colagem de várias imagens e Easter Eggs deixados por Larissa para serem descobertos. Em uma estética de computador, com várias janelas sobrepostas umas sobre as outras, é possível encontrar fotos de oferendas, símbolos dos orixás, um quadro pintado por Paes, prints do restaurante Pop Vegan no iFood, entre várias outras coisas.
Sobre a internet e o avanço cada vez mais acelerado da tecnologia e dos aparatos tecnológicos, Larissa explica: “A estética que me interessa não é muito esse lugar, é um pouco da poluição que tem dentro do universo da internet, que não deixa de ser também uma grande encruzilhada, um lugar imaginário onde tudo converge.”
Larissa enxerga essa encruzilhada não com uma conotação negativa, mas como um ponto “onde você consegue ver em perspectiva todas as possibilidades e pular às vezes de um lugar pro outro”. Esse não-lugar conceitual se reflete também na sonoridade de ÀIYÉ, que com suas variadas influências e experimentações não se encaixa em um nicho específico, seja dentro da música eletrônica, orgânica, pop ou alternativa, mas abraça todas essas possibilidades ao mesmo tempo.
Se essa falta de pertencimento um dia incomodou Larissa, hoje ela entende que esse é um bom lugar para se habitar. “Eu sinto que chegou a hora de eu sentar nessa encruzilhada e me divertir com ela, sabe? Parar de ficar achando que é uma limitação, um problema, eu não necessariamente me encaixar, e eu apenas me derramar sobre ela e permear ela, me permitir, me levar menos a sério até,” reflete.
Em Transes, suas referências vão de Clara Nunes à Rosalía, passando por nomes como Rodrigo Cuevas, Flying Lotus, Alcione e Djavan. O disco também conta com uma série de colaborações e participações especiais, como a artista portuguesa Sús em “Oração”, Alejandra Luciani (Carabobina) em “Flui”, 4RT (ATABLOCO) nos atabaques de “Xangô” e “Oxumaré”, Fabio Sá (Gal Costa) no baixo acústico de “Xangô” e Ronaldo Pereira no saxofone sampleado de “Bad Omen”.
Larissa conta que o caminho do disco apareceu para ela após um direcionamento que ela pediu a Iemanjá. Na época, ela trabalhava em algumas composições para o terreiro que frequenta e foi orientada pela divindade a colocar suas músicas de santo no disco. A possibilidade lhe trouxe um conflito interno em relação à branquitude e seu lugar de fala:
“Eu [pensava] ‘Meu Deus, como é que eu vou fazer isso?’ E aí nesse dia ela [Iemanjá] falou ‘Dá teu jeito, acha o teu jeito’, então eu fui em busca de achar o meu jeito. E aí, né, dona da encruzilhada eu percebo que o meu jeito é talvez esse: um jeito mais pop, menos sagrado de falar do sagrado. É trazer pro mundo real porque realmente a minha vivência de orixá é essa,” conta.
“Como é que eu falo de orixá falando das coisas simples, das coisas comuns, do básico, sabe?,” questiona. “Pra mim é isso, acho que também tem esse lugar de fazer essas histórias e essa visão de mundo permear o mundo pop, permear o futuro, permear os beats. Não está só no anacrônico, no lugar de ponto cantado da umbanda, da religião ou o imaculado do sagrado. Acho que essa mistura do sagrado e profano é uma coisa natural da vida.”
A relação entre o material e o espiritual é explorada de forma forte e impactante no videoclipe de “DIABLO XV”. Cantada em espanhol e com sonoridade que remete à Rosalía, a canção também explora a relação de Larissa com o tarot e a queima das relações tóxicas, padrões de comportamento e eventos traumatizantes que ela carregava até o momento.
No vídeo, Larissa interpreta duas personagens do tarot: A Papisa e O Diabo. Ela é vista carregando e se desvencilhando de seu “cordão umbilical” – uma peça feita de vários tecidos significativos em sua vida que fazia parte de suas performances no início da carreira como ÀIYÉ. Na performance, Larissa trabalhava os conceitos de outros dois arcanos do tarot: O Enforcado e A Morte. Ela conta que nasceu enforcada pelo cordão umbilical da mãe e que na umbanda isso é chamado de “aquele que nasce encarando a morte” e “que sempre vai olhar pra morte durante a vida”.
“Tem esse lugar de olhar pra morte, de olhar pro Diabo, de queimar as coisas,” explica. “E aí uma hora eu falei ‘Cara, é o fim desse ciclo, dessa Larissa enforcada. É o fim dessa Larissa que vai encarar a morte, agora a Larissa vai encarar a vida. Agora a Larissa não é mais os traumas dela, agora a Larissa não é a menina de onze anos de idade que foi estuprada. Não. Agora, essa nova pessoa que sai daqui, desse clipe hoje, queima tudo, todos esses diabos, esses demônios… Essa pessoa é feliz, é alegre, essa pessoa não vai mais se levar tão a sério, essa pessoa não vai mais se permitir cair.”
Esse ritual de libertação e queima acontece no videoclipe de “DIABLO XV” através da queima literal do cordão umbilical que carregava a bagagem emocional da vida de Larissa, assim como vários outros objetos que já não cabiam mais em sua nova realidade. “Joguei tudo, joguei ursinho de ex, joguei erva, joguei documentos de Portugal, enfim. Levei tudo e fiz esse mega ritual mesmo no clipe e foi muito forte, muito importante pra mim,” conta.
Essa queima com as sombras do passado também marca uma transição simbólica entre os álbuns Gratitrevas e Transes. ÀIYÉ fala sobre a principal diferença entre os dois discos, definindo o Gratitrevas como um projeto feito em um momento de mal-estar social e cultural, pouco antes da chegada da pandemia e em pleno governo Bolsonaro.
“A grande diferença [entre um disco e outro] eu acho que é essa vontade de me levar menos a sério,” reflete Larissa. “E possibilidades também porque eu acho que a gente está num momento em que o cenário todo já foi o pior possível, sabe? A gente precisa cultivar alegria, a gente precisa cultivar resiliência, a gente precisa olhar pras coisas como se elas pudessem funcionar. A gente precisa criar perspectivas novas de futuro. Então eu acho que esse disco também reflete um pouco isso. Outras perspectivas dos mesmos problemas, talvez, mas com uma visão de mais esperança, de mais fé também, muita fé. Acho que o Gratitrevas tava ali buscando luz nas trevas e o Transes está transitando pela luz, já levando essa luz.”
Transes, da ÀIYÉ, já se encontra disponível em todas as plataformas digitais.