Dorian Electra não surge em lugar algum sem a devida fanfarra. Dos cabelos sempre coloridos ao pacto irrevogável com o camp, essa é uma estrela do pop perspicaz e irônica o suficiente para provocar todos os sentidos da audiência atenta. E é exatamente isso que acontece em Fanfare, mais recente lançamento da carreira, um carnaval frenético no qual expõe as próprias contradições na relação com o público e a fama, surpreendendo pelo equilíbrio entre desejo e consciência social.

Desde os primórdios da carreira, quando lançou singles educativos sobre a história da arte drag, saltos, vibradores e um guia essencial sobre o clitóris, até se tornar um dos principais nomes em ascensão do hyperpop e alternativo, agora uma pessoa abertamente queer e gênero fluído, Dorian Electra faz música carregada de erotismo, perfeita para dançar, mas com uma vasta gama de significados embutidos nas entrelinhas.

E toda essa essência está em plena ebulição no terceiro álbum de estúdio de Dorian: ao longo de 13 músicas, Fanfare mergulha numa reflexão honesta e sarcástica sobre fandoms, as maravilhosas e aterrorizantes hordas de seguidores que todo artista anseia em conquistar, mas das quais frequentemente se torna uma vítima e refém. Em entrevista com o Mad Sound, concedida às vésperas da estreia no Brasil com um show no Primavera Sound, em 02 de dezembro, Electra resumiu essa dicotomia como uma “relação de mão dupla”. Se, por um lado, as comunidades de fãs são uma experiência incrível para admiradores e artistas, nas quais é possível “estar ligado a um senso de significado ou algo superior a si mesmo, e ter como propósito se unir a outros por algo que você ama”, existe também o lado tóxico da obsessão. “Amor se transforma em ódio rapidamente, ou no desejo de destruir aquela pessoa como uma forma de controle”, explicou. 

A mistura entre megalomania e vulnerabilidade crua que ditam o tom do disco já se faz presente na abertura. Em “Symphony”, Dorian faz uma narração onipresente, exigindo cada detalhe da privacidade e atenção de alguém, se confundindo nos papéis de fã e celebridade em um reality show burlesco: “Preciso assistir enquanto você dorme / Preciso te ver aos prantos”, canta em um misto de ordem, desejo e súplica. Apesar de parecer uma letra completamente rendida ao sonho americano da fama, existem vislumbres mais pessoais em confissões sussurradas sobre solidão e o desejo de esquecer cicatrizes com o barulho do público. 

Depois do disruptivo My Agenda (2020), dominado pela experimentação caótica do hyperpop, sintetizadores e um desfile de participações especiais diversas, de Rebecca Black em “Edgelord” a Village People e Pussy Riot na faixa-título, Fanfare traz uma sonoridade mais linear e com momentos mais comerciais, como na ótima “Idolize”, mas não abandona o aspecto mais edgy do próprio DNA de sua persona, como mostram bem “anon” e “Lifetime”.  “Acredito que meus dois primeiros álbuns foram muito marcados por ter um conceito em mente e aplicar isso em cada música. Com esse álbum, acho que tentei focar mais na música e deixar o conceito vir depois. E, sabe, foi interessante para mim como artista tentar mudar a abordagem na maneira como faço as coisas”, comentou. Como resultado, existe uma maleabilidade no disco que o coloca em um patamar acima dos antecessores, mesmo em comparação com a produção pomposa de Flamboyant (2019).

Em Fanfare, as letras conseguem abordar muitos dos paradoxos contemporâneos da indústria musical, sem ignorar nem mesmo os dilemas da comercialização da arte em uma sociedade capitalista, na qual tragédia, filosofia e até revolução são comercializáveis e todo movimento social é cooptado para se transformar em um novo nicho de mercado. Enquanto “Manmade Horrors” satiriza um mundo na qual redes internacionais de supermercado se proliferam a cada esquina e é possível comprar camisetas estampadas com o rosto de Che Guevara em lojas de departamento, o clipe “Sodom & Gomorrah” apresenta uma linha de merch inteiramente voltada às cidades bíblicas tão comumente usadas em discursos LGBTQfóbicos. A segunda música, o pop mais chiclete de Fanfare, funciona como uma continuação de “Adam and Steve”, um hino de auto aceitação presente no disco Flamboyant (2019). “Sabe quando as pessoas dizem ‘Deus criou Adão e Eva e não Adão e Ivo?’ ou usam o termo ‘sodomia’ como algo negativo sobre pessoas queer, pego essas frases [com uma atitude de] nos apropriarmos disso, usar [esses termos] para empoderar a comunidade”, disse. 

A capacidade de Dorian Electra para escancarar obscenidades ao exaltar os prazeres do sexo anal em “Sodom and Gomorrah”, ou implorar por submissão em “Puppet”, denuncia sua mente genial para além dos trocadilhos afrontosos. Nas entrelinhas de cada verso lascivo existe espaço proposital para reflexões sobre a humanidade e, especificamente no caso desse álbum, a relação entre celebridades, desastre e o domínio do público. “Eu realmente não consigo evitar de trazer política, economia, história e todas essas coisas para a minha música porque são temas pelos quais tenho um grande interesse e paixão. Naturalmente, isso vai se refletir na minha música”, comentou na conversa com o Mad Sound. “Mas também adicionando camadas do que é apenas divertido e sexual, sabe? Apenas uma expressão de quem eu sou e quem eu quero ser, e tudo isso também”. 

De volta aos aspectos mais filosóficos da faixa, surgiu o questionamento se tragédias são mais vendáveis na música pop da mesma forma que lotam museus. “Isso é realmente interessante. Por um lado, a tragédia vende melhor nas notícias ou nas redes sociais. Mas também acredito que, às vezes, o propósito da música pop é proporcionar às pessoas uma fuga das tragédias da vida real e dar a elas algo para celebrar. Então, acho que é possível ter ambos de uma maneira interessante e complexa. E é assim que eu gosto que a música pop seja”, pontuou Dorian.

Apesar de reconhecer como o amor das bases de fãs facilmente se converte em crueldade, Electra tem uma leitura política interessante sobre o fenômeno da busca de controlar celebridades como marionetes – e não seria apenas sede por sangue pura e maligna.“Neste momento, historicamente e politicamente, acredito que as pessoas se sintam fora do controle em relação ao nosso mundo caótico. As pessoas estão enfrentando dificuldades econômicas e opressão política. E acho que esse sentimento de impotência pode realmente se traduzir em querer controlar coisas ao seu redor, é como uma técnica natural de sobrevivência”, analisou. “Isso pode se manifestar no desejo de controlar celebridades ou de ter alguma influência sobre como elas vivem suas vidas. Por exemplo, acho que muitas pessoas veem subconscientemente seu ídolo pop favorito como seu representante democraticamente eleito. Elas pensam: ‘Bem, você tem que fazer o que dizemos e nos servir, porque nós te colocamos no poder’. E acho que isso realmente reflete as dificuldades políticas que as pessoas em todo o mundo estão enfrentando atualmente e, por isso, buscam outras maneiras de sentir que têm algum controle de alguma forma”. 

Seja na sequência estonteante de referências disparadas na sonoridade suja de “Freak Mode” e “Phonies”, ou nas reflexões mais intimistas da sequência final de “Warning Signs” e “Wanna Be a Star”, a arte de Dorian Electra é uma experiência sonora ousada e original para descortinar o mundo ao seu redor – para si e quem mais tiver interesse. “Você não deveria precisar de uma escola cara para conseguir entender o que está acontecendo no mundo ao seu redor”, defendeu.

Para quem acompanhou a breve passagem de Dorian no Brasil no começo de novembro, especialmente o DJ set realizado em São Paulo na madrugada pós-Primavera Sound, não ficará difícil entender a escolha delu ao eleger “Freak Mode” como a favorita do álbum:  “Ela meio que captura algo interno sobre mim e, de alguma forma estranha, minha identidade sexual, que é difícil expressar de outra forma em palavras”. 

Ainda que vulnerabilidade não seja algo novo na discografia de Dorian Electra, “Warning Signs” é uma surpresa delicada aos fãs de longa data por ser a música mais minimalista de uma carreira consolidada no máxi. Uma das composições mais complexas do disco, a música é comumente entendida como uma história de relacionamentos abusivos, quando alguém percebe os alertas vermelhos, mas não consegue quebrar o ciclo. A verdadeira inspiração para a faixa, porém, permanece reservada: “Escutei isso dos relacionamentos abusivos de muitas pessoas. Essa é uma interpretação. Eu acredito que, sim, essa é uma das minhas músicas mais pessoais e emocionalmente vulneráveis. Eu gosto de deixar um pouco de mistério também em termos de onde ela surgiu, porque acho que é realmente poderoso ver cada pessoa preencher as lacunas com seu próprio significado”.

À primeira vista, o mundo de Dorian Electra pode parecer uma bolha fantástica de cores berrantes e orgias extravagantes de um reino distante, mas é um espelho mágico da realidade da sociedade atual, mergulhada em um eterno conflito de amor e ódio, desejo e negação numa disputa política e social pela existência plena enquanto indivíduos complexos. Enquanto os impasses seguem, podemos contar com elu para trazer provocações valiosas embrulhadas para presente com estardalhaço o suficiente para a doce escapismo enação do pop. 

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