Mesmo depois de dois anos e meio, é difícil dizer que deu tempo de sentir saudades de Harry Styles. Seu segundo álbum, Fine Line chegou em dezembro de 2019, pouco antes da pandemia, mas teve um período extendido de vida, com o videoclipe de “Golden” sendo lançado em outubro do ano seguinte e o sucesso do hit de verão “Watermelon Sugar” mantendo sua relevância nas paradas por dois anos quase completos.

Com toda a divulgação nas rádios, trends virais do TikTok e dominação completa das plataformas digitais, é possível dizer que o sentimento de adeus da era Fine Line ainda não tinha nos atingido por completo quando o cantor começou a divulgar seu novo álbum, Harry’s House

O processo em si foi bastante acelerado, com apenas um single lançado antes da estreia – e foi mais que o suficiente. Em 24 horas, Harry Styles quebrou o recorde do Spotify de mais streams atingidos em um dia por um cantor masculino com o hit “As It Was”. Era o início de uma nova era que trouxe um novo disco completo na última sexta-feira, 20. 13 músicas quentinhas e recém-saídas do forno, se estendendo por 42 minutos de duração.

Ao bater na porta de Harry’s House, não é possível adivinhar o que se vai encontrar. Além do único single lançado anteriormente, o cantor e sua gravadora não deram nenhuma pista ou indício sobre o que poderíamos esperar desse álbum. A capa, mostrando um Harry contemplativo de pé em uma sala de estar de ponta-cabeça e com os móveis no teto, nos dava apenas uma noção básica da essência do disco: as coisas não seriam feitas de modo convencional.

E de fato não foram. Em Harry’s House, Styles deu um passo bem além do pop e do rock acústico já conhecidos, e decidiu homenagear suas referências oitentistas com muito jazz, funk e groove – não tão parecidos com a pegada disco que vimos em álbuns de Dua Lipa e The Weeknd e até mesmo em singles do próprio Fine Line, como “Adore You”. Em seu terceiro álbum de estúdio, com produção de Kid Harpoon e Tyler Johnson, Harry apostou em um som mais maduro, profundamente experimental, não necessariamente palatável para o mundo pop.

Ao passarmos pela porta para entrarmos na casa de Harry, somos recebidos no hall de entrada pela brilhante e até meio cacofônica “Music For a Sushi Restaurant”. A canção é um estardalhaço de referências do jazz, com baixo proeminente e trompetes altos no refrão dançante. É como pisar dentro de uma casa desconhecida e ser recebido com uma enorme festa, cheia de confetes, globos espelhados e muita gente alegre e espalhafatosa.

Depois da recepção, somos convidados a dançar na sala de estar com a deliciosa “Late Night Talking” – uma gostosa narrativa cheia de borboletas no estômago, trazidas pela magia de um amor novo, refrescante e recém-descoberto, feita com um groove oitentista para se imaginar em um verdadeiro baile usando roupas de cores metalizadas e fazendo os famosos passinhos enquanto se alegra com as maravilhas da juventude.

No fim de festa, “Grapejuice” diminui as luzes e o ritmo para uma última dança romântica a dois antes de mandar as pessoas para casa – é hora de ficar sozinho e refletir, e nem sempre isso é tarefa fácil. O peso da solidão começa a bater enquanto a companhia vai escoando, e Harry Styles se torna mais reflexivo nessa baladinha contemplativa, pensando tanto nos momentos bons com a pessoa amada, quanto no peso da dependência alcoólica para lidar com a ausência; nesse caso, particularmente, o consumo excessivo de vinho. 

Depois do porre, a ressaca chega com tudo em “As It Was”. Apesar da vibe dançante e o aceno para o teclado clássico do A-HA em “Take On Me”, a letra da canção é bastante sombria e fala de uma angústia existencial em que se misturam o vazio, a solidão e a perda inevitável das coisas que mais amamos conforme o tempo passa e nada mais é “como era antes”. A própria canção pinta uma imagem bem clara de acordar no dia seguinte sem saber muito bem o que se passou no trecho: “Atenda o telefone / ‘Harry, você não serve pra ficar sozinho’ / ‘Por que está sentado no chão de casa?’ / ‘Quais pílulas você tomou?’”

Após esse misto de emoções na sala de estar, somos transportados para a cozinha, onde o sol atravessa gentilmente as janelas e banha o espaço em uma suave luz matinal. “Daylight” é uma balada nostálgica, suave e cheia de sintetizadores, para se balançar suavemente enquanto se prepara uma omelete e se canta com uma saudade agridoce de se sentir – ao mesmo tempo boa e dilacerante. A referência ao cenário é feita no verso “Você estava usando cocaína na minha cozinha”, e o espaço é reutilizado na faixa seguinte, “Little Freak”, logo no início: “Você está sentada no topo do balcão da cozinha”. Aqui, Styles relembra uma verdadeira personagem de teor cinematográfico, mas com muita doçura e arranjos minimalistas enquanto seus vocais etéreos ecoam em várias camadas.

Chegando na metade do álbum está a sensível e tocante “Matilda”, que mesmo em pouco tempo já se tornou uma favorita dos fãs. “Matilda” não encontra um lugar exato na casa de Harry, justamente porque a personagem principal da canção está deixando para trás um local que nunca pôde chamar de lar e indo em busca de algo para chamar de casa. A letra tem inúmeras referências ao enredo do filme Matilda (1996), mas acaba falando profundamente com um público e uma geração atormentados pela dificuldade de encontrar seu lugar no mundo em segurança. Essa é uma das composições mais notáveis de Styles e traz em si uma delicadeza e profundidade emocionais muito semelhantes à faixa “Falling”, encontrada em seu álbum anterior. É um momento de vulnerabilidade total, se não para quem está cantando, definitivamente para quem está ouvindo e sentindo como se o cantor falasse diretamente para si.

No Lado B do Harry’s House somos apresentados a seu quarto e, mais especificamente, aos momentos de intimidade de um casal. A apaixonante “Cinema” chega no embalo gostoso de um funk sedutor e faz uma série de trocadilhos inteligentes com supostas referências ao relacionamento do cantor com a diretora e atriz de cinema Olivia Wilde, que recentemente dirigiu um filme estrelando o próprio Harry Styles. Em “Daydreaming”, um pouco de toda essa paixão ainda é sentida com a volta dos trompetes e da pegada jazz apresentada no início do álbum. Aqui, o casal sabe que terá que se separar em breve e pede: “Me dê algo com o qual eu possa sonhar”.

Apesar de “Keep Driving” manter esse clima ensolarado e seguir listando momentos íntimos, ela é também um doce escape da realidade – uma rápida viagem de carro para longe dos horrores do mundo e das quatro paredes sufocantes do isolamento social. Uma verdadeira preparação para férias de verão enquanto Styles parece listar mentalmente tudo o que precisa levar consigo e tudo o que planeja fazer em sua pausa do mundo: “Filmadora em preto e branco / Óculos de sol amarelos / Cinzeiro, piscina / Cera quente, saltos do telhado”.

De volta em sua casa, as faixas finais são feitas com teor muito mais contemplativo e sem os grandes arranjos e instrumentos de canções anteriores. A introspectiva “Satellite” lamenta um relacionamento que já não está indo tão bem como se fosse um mergulho em seus próprios pensamentos feito no quintal dos fundos, seja à beira da piscina ou fumando um cigarro em silêncio, e fala mais explicitamente sobre um tema bastante recorrente no Harry’s House: o uso de cocaína – nunca antes mencionado abertamente pelo cantor, mas altamente especulado pela mídia.

“Boyfriends” soa como uma conversa entre família tida nesse mesmo quintal, o que não é muito distante da realidade. A faixa gritantemente sincera e até mesmo um tanto autoindulgente foi inspirada, segundo Styles, tanto em suas próprias atitudes insensíveis com ex-namoradas quanto em relacionamentos não-saudáveis que ele presenciou sua irmã viver. Apesar de soar empática em um primeiro momento, a canção esconde em si o grande amargo gosto de uma revelação excruciante: a de que homens como o próprio Harry sabem exatamente o que estão fazendo ao tirar proveito da dependência emocional de suas parceiras. “Namorados acham que você é fácil / Eles te negligenciam”, admite em uma composição muito semelhante a outras faixas do Fine Line – isso porque a canção foi escrita na mesma época do álbum em questão e encontrou seu lugar em Harry’s House, apesar de soar completamente deslocada do restante do disco.

A porta de saída dessa casa tão fascinante e cheia de histórias é a faixa de encerramento “Love Of My Life”, também bastante vulnerável e deixando em evidência os vocais de Styles. Apesar das declarações do cantor sobre essa ser uma canção sobre seu país de origem, a Inglaterra, “Love Of My Life” também se conecta com a faixa anterior quando interpretada da perspectiva de um namorado negligente: “Eu não te conheço nem metade tão bem quanto os meus amigos / Não vou fingir que estou fazendo todo o possível para conhecer os seus vincos e os seus limites”. É uma canção bastante sentida, que fala de perda e arrependimento, e de não se esforçar o suficiente para manter uma relação com o “amor de sua vida”, seja ele um lugar ou uma pessoa.

Em seus 42 minutos bastante hospitaleiros, Harry’s House se mostra um lugar muito mais interessante de se ficar que alguns trabalhos anteriores de Harry Styles. Esse lugar metafórico que pode representar um local físico ou um abrigo emocional se apresenta entre festas, momentos de solidão, encontros apaixonados e crises existenciais – tudo na tentativa de construir um espaço aconchegante ao qual todos nós queremos chamar de casa. Afinal, nos últimos dois anos, foi em casa que passamos a maior parte do tempo só para perceber, às vezes, que tal lugar não representa mais um lar. Em seu terceiro álbum de estúdio, porém, Harry construiu seu próprio lar e deixou as portas abertas para que o explorássemos. Sendo mais sincero do que um dia já foi na vida, ele indiretamente declara dentro de cada música: Esses defeitos, falhas e vícios são quem eu sou. Aos que não gostarem, saiam pela porta.

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