Durante a pandemia, ver filmes de terror foi a única coisa capaz de acalmar Florence Welch. “O que me incomodava era ver comédia romântica, com pessoas curtindo a vida e saindo”, diz ela em entrevista ao G1 Brasil. “Na pandemia eu vi o máximo de terror que podia, e pela primeira vez eu entendi esse tipo de filme.”

Inspirada por filmes de terror psicológico e cult como A Bruxa (2015), Midsommar (2019) e Suspiria (2018), a cantora de voz espectral e presença sobre-humana criou em seu quinto álbum de estúdio uma verdadeira história de horror pandêmico, começando pelo nome: Dance Fever.

O título se refere a uma curiosa síndrome conhecida como “febre da dança” que aconteceu durante a Idade Média. Até hoje não se sabe explicar o motivo, mas um estranho tipo de praga acometeu as pessoas da Europa e fez com que elas saíssem dançando descontroladamente pela rua. O fenômeno recebeu um nome, “choreomania”, que também batiza a terceira faixa do disco de Florence.

O conceito para o Dance Fever surgiu antes da pandemia de COVID-19, mas acabou se tornando perfeito para um álbum feito em meio a mais uma praga. Aqui, entretanto, a dança é vista não como uma sentença de morte, mas sim como um escape. Florence descobriu que ao dançar conseguia diminuir a intensidade de suas crises de ansiedade, encontrando preciosos momentos de liberdade ao manter o corpo em movimento.

Dance Fever é, então, nada menos que um álbum feito para dançar e expurgar os demônios interiores através do próprio corpo. Parte do álbum carrega a produção minimalista de Jack Antonoff e retoma tanto a sonoridade quanto temas que foram explorados em seu antecessor, High as Hope (2018). Mais suaves e delicadas, faixas como “Back In Town”, “Girls Against God” e “The Bomb” despem Florence Welch de sua personagem mística e todo-poderosa adotada para os palcos. Até mesmo canções dançantes como “Free”, “Choreomania” e “My Love” nos dão vislumbres mais profundos da humanidade de Florence e nos permitem conhecer a pessoa por trás do mito – suas inseguranças, medos, ataques de pânico e atividades cotidianas que não se encaixam no imaginário popular de estrela do rock.

Apesar de ser o álbum em que se mostra mais humana, Dance Fever também é pesadamente investido na mitologia católica que foi muito usada por Welch em seu segundo disco, Ceremonials (2011). Faixas grandiosas como “Dream Girl Evil”, “Cassandra” e “Daffodil” evocam novamente esse som mais barroco e assombroso, pintando a cantora às vezes como anjo, às vezes como demônio, bruxa, entidade ou deusa. É a persona Florence + The Machine tomando conta e subvertendo os horrores do isolamento, da morte e da doença na figura de um Poder Maior, uma entidade que possui certo tipo de controle sobre o que está acontecendo ao seu redor.

Em muitas das composições, porém, Welch se dedica especificamente a desconstruir ideias pré-concebidas sobre ela e subverter completamente as expectativas depositadas em si pelos outros. “Eu não sou mãe / Não sou noiva / Sou um rei”, canta no primeiro single e faixa de abertura, “King”. Mais tarde em “Dream Girl Evil”, ela questiona a imagem que um parceiro amoroso tem dela, tornando-a nada menos que uma projeção ao invés de enxergá-la por quem ela é. “Me faça perfeita / Me faça sua fantasia / Você sabe que eu mereço”, canta.

Em suas 14 faixas, o Dance Fever apresenta uma verdadeira homenagem à discografia de Florence Welch, evocando seus antigos trabalhos, trazendo referências novas e dividindo-se entre a fragilidade e vulnerabilidade absolutas, e a fantasia e delírios de grandeza. Toda uma evocação de mitos e lendas para revelar uma dolorosa verdade: apesar de sua presença de palco sobrenatural e suas letras mitológicas, Florence é assustadoramente humana. E finalmente quer ser vista como tal.

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