Que a pandemia afetou um grande número de artistas e seus produtos musicais, todos nós sabemos. Em alguns artistas, porém, as mudanças se deram de forma mais profunda do que em outros, e isso é notável em suas músicas, mesmo – e talvez principalmente – quando estas não mencionam o período de isolamento de forma alguma. É o caso de Kehlani e seu novo álbum, blue water road.

Foram dois anos bastante intensos para Kehlani. Em maio de 2020, ela lançou seu segundo álbum de estúdio, It Was Good Until It Wasn’t; um disco que ela mesma descreve como influenciado por um processo de composição “tóxico, muito sombrio e hiperssexualizado”, o que refletia o momento que estava vivendo. Em 2021, ela encontrou sua identidade de duas novas formas: se identificando como uma pessoa não-binárie e atendendo pelos pronomes “she/they” (ela/pronome neutro), e também se entendendo como lésbica.

Falar sobre sua sexualidade criou certa comoção porque durante anos a artista se identificou abertamente como bisexual e teve relacionamentos com homens – um deles tendo gerado sua única filha, agora com 3 anos, Adeya. Em entrevista recente à NME, Kehlani falou sobre como aprendeu sobre heterossexualidade compulsória através da internet e percebeu que era exatamente isso que ela estava vivendo. 

“Não entender minha sexualidade tinha criado um tumulto interior e uma dinâmica ruim com as minhas próprias emoções”, conta. “É como uma guerra com você mesmo que acontece internamente e às vezes você não sabe o motivo porque não tem o conhecimento ou o vocabulário certo sobre isso ainda.”

Kehlani em imagem divulgada como parte do ‘blue water road’. Créditos: Reprodução/Facebook

Se toda essa confusão interna e o incansável esforço de tentar se moldar para se encaixar em relações heteroafetivas foram o tema central de It Was Good Until It Wasn’t (2020), o que podemos ouvir em blue water road (2022) é a paz e serenidade de alguém que não está mais doando tudo de si em prol de outras pessoas e em detrimento da própria sanidade mental e de seu amor próprio.

A experiência de ser mãe e encontrar sua identidade moldou Kehlani e, consequentemente, suas relações. Em um episódio de seu mini documentário sobre o novo álbum, ela explica que uma vez que começou a se relacionar apenas com mulheres, seus relacionamentos assumiram uma característica mais intensa e que isso é refletido em sua música e suas composições.

Essa diferença pode ser sentida logo na faixa de abertura “little story”, onde Kehlani desabafa sobre não ter sido justa dentro de uma relação, mas de forma muito mais leve que suas canções anteriores. Com um violão de base, vocais em evidência e um alto teor confessional, a autora admite seus erros e se declara novamente para a pessoa em questão, abrindo o peito sobre seus sentimentos mais profundos e assumindo suas responsabilidades.

Mais dessa intensidade pode ser encontrada na excelente e apaixonante “melt”, uma ótima faixa com um dedilhado de violão latino mesclado a batidas programadas para falar de um amor tão intenso que o eu-lírico sente como se estivesse se fundindo à outra pessoa: “Não sei dizer onde seu cabelo começa e o meu termina / Se eu não tivesse todas essas tatuagens, diria que é a sua pele”, canta Kehlani.

Apesar do teor mais leve das composições – sem vestígios de autodepreciação ou desgaste emocional causado por relações tóxicas – grande parte do Blue Water Road é feito para dançar e curtir a vibe de um R&B que por vezes é ensolarado e refrescante, como em “any given sunday”, e por outras traz um pouco mais de peso característico do hip-hop, como em “wish i never”. O disco também traz um número razoável de parcerias, sendo a mais notável delas com Justin Bieber na cativante “up at night”. A escolha inusitada acabou se provando um grande acerto de ambos os lados: Bieber traz um romantismo para a faixa que deixa um grande saudosismo de seus tempos de sucessos dos álbuns Believe (2011) e Journals (2013) – letras apaixonadas entregues com vocais carregados de devoção.

Em “altar”, Kehlani toca em outro aspecto que a transformou profundamente nos últimos anos – sua prática espiritual. Sem mencionar exatamente quais são suas crenças, a cantora revelou que uma das principais práticas é a veneração de ancestrais, que é descrita na canção atrás do ritual de acender velas, oferecer comida a seus antepassados e dividir uma refeição como modo de manter um contato próximo com o mundo espiritual e aqueles que já partiram do plano terrestre.

Quem teve a oportunidade de assistir Kehlani no Lollapalooza Brasil ou quem assiste os episódios de seu documentário sobre o blue water road consegue notar facilmente a aura mais leve e confortável que a artista carrega – seja na serenidade de seu olhar, seu sorriso radiante ou no fato dela ter parado de usar maquiagem em excesso porque agora se sente mais confortável na própria pele.

Durante essa estrada de descobertas que é banhada pela água do mar, Kehlani mostra a excepcional cantora de R&B que é, deixando que sua voz conte sua história, suas alegrias e suas tristezas com uma clareza e alcance nunca vistos antes. Em blue water road, ela finalmente está em casa.

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