Texto por: Ana Clara Martins
“Bora, Macal!”, grita Caetano Veloso antes do solo de “Nine Out Of Ten”, na gravação presente no disco Transa (1972). Esse foi o meu primeiro contato com Jards Macalé, antes mesmo de escutar qualquer música dele. Naquela época, mesmo acompanhando um dos maiores nomes da MPB, Jards ainda carregava a vontade de gravar o próprio álbum. Até então havia lançado o compacto “Só Morto” (1969) e colaborado com outros grandes artistas, como Maria Bethânia e Nara Leão.
Após voltar de Londres para participar do Transa, Jards finalmente materializa o seu primeiro álbum, também gravado em 72. O disco homônimo conta com a participação de Tutty Moreno (bateria) e Lanny Gordin (baixo e guitarras), além de letras escritas em comunhão com os grandes poetas Torquato Neto, Capinam e Waly Salomão.
Em 2022, comemoramos os 50 anos do álbum que trouxe clássicos como “Mal Secreto”, “Farinha do Desprezo”, “Vapor Barato” e “Hotel das Estrelas” – as duas últimas eternizadas pela voz de Gal Costa. Para celebrarmos junto com ele, Jards preparou um show histórico na última sexta-feira (25) no Circo Voador, com Tutty Moreno na bateria.
O início da noite foi comandado por DJ Janot com um set recheado de MPB, apresentando músicas como “Para Lennon e McCartney”, “Bat Macumba” e “Barato Total”. Depois foi a vez do capixaba André Prando, mostrando a sua voz intensa imersa em canções marcadas pela psicodelia brasileira, como “Fantasmas Talvez”, “Dharma” e “Ode à Nudez”. O show também contou com a participação da gaúcha Duda Brack.
Chega o momento clássico de todo show no Circo Voador: Lencinho sobe ao palco para comentar sobre a agenda de shows das próximas semanas e anunciar a entrada do artista. Mas, antes disso, Lencinho puxa um minuto de palmas como uma homenagem a Erasmo Carlos, que faleceu na última terça-feira (22). O som das palmas invadiu a lona do Circo, enquanto já podíamos observar a expressão emocionada de Jards nas coxias, prestes a entrar no palco.
Jards Macalé senta em sua cadeira e puxa os primeiros acordes de “Farinha do Desprezo”, acompanhado de Guilherme Held na guitarra, Pedro Dantas no baixo e, é claro, o gigante Tutty Moreno na bateria. Após o primeiro solo da música, Jards interrompe a apresentação para conseguir entrar no tom. Sorte a nossa que escutamos duas vezes consecutivas o arranjo fabuloso desta introdução, com Tutty entregue às quebras de tempo e viradas.
Conforme prometido, diversas canções do álbum estiverem presentes no show, como “78 Rotações”, “Revendo Amigos” e “Let’s Play That” – essa última possui uma incrível linha de baixo melódica e complexa gravada por Lanny Gordin, mas que não perdeu a sua essência quando tocada por Pedro Dantas, que buscou manter o timbre e a identidade das gravações originais. Entretanto, canções marcantes como “Movimento dos Barcos” e “Mal Secreto” ficaram de fora do repertório.
A banda sai e Jards fica sozinho com o seu violão, instaurando o que talvez tenha sido o momento mais emocionante daquela madrugada, puxando “Vapor Barato” e “Hotel das Estrelas”, ambas imortalizadas na voz de Gal. Com os olhos marejados, Jards observa o público cantar cada palavra das letras, como uma bela homenagem à grande amiga que partiu recentemente. “Rio e também posso chorar”, ecoa no ambiente.
As guitarras de Held também contribuíram para criar uma atmosfera semelhante àquela presente no disco, com bastante experimentalismo, muitas vezes com a banda entrando em jams dignas de apresentações de Free Jazz.
Já em relação a Tutty Moreno, não há como falar algo diferente: ele é um fenômeno. Ver o Tutty tocar é um acontecimento inesquecível. Mesmo de olhos fechados, é possível identificar a sua marca e pensar: “Ok, definitivamente é o Tutty tocando”. Em vários momentos, senti como se eu estivesse no porão do teatro Opinião, local que abarcou os ensaios do primeiro disco de Jards.
O último álbum solo de Jards, Besta Fera (2019), também marcou presença no show, com as músicas “Pacto de Sangue”, “Trevas” e “Tempo e Contratempo”.
Aproximando-se do fim da apresentação, o artista estende a bandeira do Brasil com os dizeres “Amor, Ordem e Progresso” estampados. Não é novidade que, desde a época da ditadura, Jards Macalé luta pela mudança do lema da bandeira nacional.
“Agora voltamos para o início”, diz Jards antes de tocar novamente “Farinha do Desprezo” no bis. O show é encerrado com “Quero Viver Sem Grilo”, enquanto o público canta “Quero viver, quero viver, quero viver”.
“Acabou de repente e esdruxulamente”, falou o artista poucos segundos antes de sair do palco. Assistir Jards Macalé é sempre diferente, especial e esdrúxulo (no sentido mais elogioso que essa palavra pode assumir).
Confira a nossa galeria exclusiva com fotos tiradas pelo colaborador Bruno Fernandes Monteiro: