Tiago Iorc está de volta e completamente diferente, com cabelo raspado e uma nova postura com relação aos próprios privilégios masculinos – pelo menos, essa é a mensagem que deseja passar com “Masculinidade”, música na qual questiona estereótipos de gênero do ponto de vista dos homens. Esse é o primeiro single do cantor e compositor desde a romântica “Você Pra Sempre Em Mim”, de junho de 2020. 

O momento do lançamento da música de suposta redenção da postura machista vivida até os atuais 35 anos de idade é bem pensado, especialmente em tempos de cancelamento, quando qualquer indício de crise na imagem pede por um bom pedido de desculpas. Nos últimos tempos, Iorc se envolveu em polêmica com a dupla ANAVITÓRIA, antigas parceiras musicais do cantor, em uma disputa pública sobre questões de direitos autorais com o antigo empresário que impediu as cantoras de regravar uma composição conjunta. No meio da troca de vídeos sobre o tema, ele alegou que as meninas “não sabe[m] da missa a metade” sobre o que reclamavam. 

Menos de um mês depois, fotos íntimas atribuídas ao cantor foram compartilhadas por uma fã com quem trocava nudes – e não apenas likes, afinal. Segundo a colunista Fábia Oliveira, do O Dia, as mesmas imagens eram enviadas para várias garotas. A postura de se envolver sexualmente com fãs não era segredo da parte do músico, que nunca descartou a possibilidade de relacionamentos com as admiradoras em entrevistas.

Em 2016, ele chegou a procurar por uma fã que achou “muito bonita” nas redes sociais. “A gente se perdeu de vista e eu pensei, ‘nunca mais vou ver essa mulher na vida, se fosse a mãe dos meus filhos, eu não vou saber, não vou ter a chance de conhecê-la, né?’”, contou à Capricho sobre o acontecimento. 

Essa sequência de episódios foi mais do que suficiente para Tiago Iorc desaparecer dos olhos públicos mais uma vez, como já tinha feito anteriormente. E voltou com a proposta de um mergulho profundo de autoconhecimento e mudança, abordando essas polêmicas logo nos primeiros versos.

Eu ‘tava numa de ficar sumido
Dinheiro, fama, tudo resolvido
Fingi que não, mas, na verdade, eu ligo
Eu me achava mó legal

Queria ser uma unanimidade
Eu quis provar a minha virilidade
Eu duvidei da minha validade
Na insanidade virtual

“Masculinidade” tem acertos e (muitos) erros. Esse é um tema que, sem dúvida, deve ser abraçado e entendido pelos homens, parte essencial da solução desse problema. Do mesmo jeito que o racismo é um problema dos brancos, a misoginia do sistema patriarcal é criação feita por e para o benefício dos homens, que devem reconhecer os próprios privilégios, buscar a mudança de atitude e levar o debate para esferas nas quais as mulheres, enquanto classe oprimida, não conseguem chegar. 

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Utilizar a plataforma de homem prestigiado na música para levantar debates sérios é muito relevante. Na música, temas como saúde mental e a responsabilidade masculina pelas próprias atitudes são enfatizados em meio à confissões de diversos comportamentos tóxicos do próprio artista. 

Cuidado com o excesso de orgulho
Cuidado com o complexo de superioridade, mas

Cuidado com desculpa pra tudo
Cuidado com viver na eterna infantilidade

Cuidado com padrões radicais
Cuidado com absurdos normais
Cuidado com olhar só pro céu
E fechar o olho pro inferno que a gente mesmo é capaz

Cuida, meu irmão
Do teu emocional
Cuida do que é real

Mas o que deveria ser um mergulho de reflexão e reconhecimento do lugar que ocupa na sociedade não passa de uma poça rasa e sem vida na qual Iorc apenas consegue enxergar o próprio reflexo, assim como tantos outros homens que acreditam estar em processo de desconstrução, em uma versão moderna e politicamente correta do complexo de Narciso. 

Não demora muito para a letra se perder completamente na miopia, incapaz de enxergar além do próprio umbigo dos homens responsáveis pela composição, repetindo frases prontas e vazias que ignoram os horrores vividos pelas mulheres para focar apenas em incômodos pessoais. Além de Iorc, “Masculinidade” é assinada por Mateus Asato, Tomás Tróia e Lux Ferreira, e apenas homens estavam envolvidos no processo de produção e masterização da faixa. E dá para perceber. 

Por mais que seja importante reconhecer os efeitos dos estereótipos de gênero na própria vivência e levar o debate para outros homens, nem mesmo isso é feito com total honestidade na canção. Apesar de ter feito uma carreira com músicas românticas, escrevendo incansavelmente sobre relacionamento com mulheres em sucessos como “Coisa Linda”, “Amei Te Ver” e “Tangerina”, Tiago Iorc finge que não teve direito aos próprios sentimentos. 

Eu cuido pra não ser muito sensível
Homem não chora, homem não isso e aquilo
Aprendi a ser indestrutível
Eu não sou real

Conversando com os meus amigos
Eu entendi que não é só comigo
Calar fragilidade é castigo
Eu sou real

Isso acontece porque é impossível falar de masculinidade sem pensar também no significado de feminilidade, uma vez que esses conceitos de gênero são inversamente proporcionais: na sociedade patriarcal, aos homens é dado o domínio, enquanto às mulheres é forçada a submissão. 

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Quando ignora as perversas consequências da misoginia contra as mulheres e outras classes oprimidas, a música perde o contexto histórico e social na qual está inserida e cai na vitimização do homem como uma criatura injustiçada pelo mesmo sistema que lhe deu o privilégio de se preocupar mais com a vontade que sente de pedir um abraço do que com as meninas e mulheres agredidas, estupradas e mortas diariamente pela violência masculina, parte integral e determinante da masculinidade que a letra sugere ser algo bem frágil, quando se trata de violência tangível na forma de misoginia e homofobia. 

Masculinidade frágil, coisa de menino
Eu fui profano e sexo é divino
Da minha intimidade, fui um assassino
Que merda!

Quando criança, era chamado de bicha
Como se fosse um xingamento
Que mais coisa esquisita
Aprendi que era errado ser sensível
Quanta inocência

“Masculinidade” está completamente cega quando se trata de vivências diferentes da própria. Se antes as mulheres eram musas necessárias para grande parte das letras do artista, senão todas, justamente agora são completamente esquecidas mesmo quando são as principais vítimas dos temas abordados. 

Quando Tiago Iorc reconhece comportamentos abusivos, como traição e objetificação, parece lamentar apenas o mal feito a si próprio na autodestruição. A música fala de ser reprimido quando, na vida real, a liberdade dada aos homens é tamanha que até mesmo os crimes por eles cometidos são relativizados, enquanto mulheres são questionadas até quando vitimizadas. 

Existe uma questão real de saúde mental na dificuldade masculina de expressar fragilidade de qualquer forma, refletido até mesmo na falta de cuidado com a saúde física por orgulho, algo que tem consequências e precisa ser repensado, especialmente entre homens. Mas tirar a responsabilidade dos próprios ombros também é uma forma de fugir das consequências dos próprios atos. Para piorar, citar as características opostas à masculinidade como inerentemente femininas é dar razão ao determinismo biológico machista. 

Eu tive medo do meu feminino
Eu me tornei um homem reprimido
Meio sem alma, meio adormecido
Um ato fálico, autodestrutivo

No auge e me sentindo deprimido
Me vi traindo por ter me traído
Eu fui covarde, eu fui abusivo
Pensei ser forte, mas eu só fugi

(…) Ai, ai
Esse homem macho, machucado
Esse homem violento, homem violado
Homem sem amor, homem mal amado

A música “Masculinidade” tinha tudo para acertar quando se trata dos tópicos abordados. Até mesmo a pornografia entrou em pauta, uma questão alarmante que ainda encontra muita resistência no debate mais amplo. Ao falar dessa indústria, o cantor se limita a desabafar sobre o vício e inseguranças causadas com o próprio corpo, mais uma vez se limitando ao ego. O pornô é uma questão de saúde pública também pelo vício e transtornos de imagem que causa, mas principalmente por estar diretamente relacionado ao tráfico de crianças e mulheres, normalização da violência sexual, racismo e outras formas de violência. 

E caí na pornografia
Essa porra só vicia
Te suga a alma, te esvazia
E quando vê passou o dia

E você pensa que devia
Ter outro corpo, outra pica
A ansiedade vem e fica

(…) Precisamos nos responsabilizar, meus amigos
A gente cria um mundo extremo e opressivo
Diz aí, se não estamos todos loucos
Por um abraço
Que cansaço!

Com sorte, essa canção será o pontapé inicial da reflexão de muitas pessoas, a despeito do público majoritariamente feminino do cantor. Mesmo assim, os maiores frutos do lançamento certamente estão nas questões levantadas sobre as limitações desse discurso de homem branco heterossexual diferenciado, desafiador de padrões, posição que por si só é beneficiada pelo sistema. 

Já passou da hora de parar de comemorar pelas migalhas oferecidas pelos homens, sejam na carreira ou nas relações interpessoais, e cobrar atitudes ao invés do discurso bonitinho. Quando canta que “minha alma é profunda e se afoga no raso”, Iorc parece dar sinal de não ter planos de mergulhar de cabeça nas gotas de consciência que oferece como se fossem um límpido oceano. 

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