O longo período de isolamento social durante a pandemia de COVID-19 forçou muitos de nós a uma convivência diária com um personagem que por vezes não gostamos tanto de encarar: nós mesmos. Entre os artistas, esse período de solidão, introspecção e questionamentos existenciais não só fomentou grandes novos trabalhos, mas também, em alguns casos, serviu como um poderoso catalisador para uma mudança completa de identidade visual e musical.

Isso porque encarar a nós mesmos com total vulnerabilidade exige que vejamos cada um de nossos ângulos sob o mesmo holofote, sejam esses agradáveis ou não. É exatamente essa linha que o Bullet Bane segue em seu quarto álbum de estúdio, BLLT. Depois de quase dois anos de sentimentos sufocados e emoções reprimidas, a banda da cena hardcore nacional formada por Fernando Uehara (guitarra), Rafael Goldin (baixo), Danilo de Souza (guitarra) Renan Garcia (bateria) e Arthur Mutanen (vocal) se reuniu em um sítio para mais uma dose de isolamento, mas dessa vez em conjunto e com um propósito: juntar todas as experiências e desaguá-las em um disco.

Os fãs de hardcore melódico vão encontrar nesse projeto um grande refúgio não só para seu gosto musical, mas também para as suas emoções mais profundas. Cada riff de guitarra, cada viagem eletrônica e cada nuance dos vocais variáveis de Mutanen abrem uma nova porta para vivenciar sensações, sentimentos e memórias que nem todos conseguem colocar em palavras, mas que conseguem reconhecer nas dores do outro. Nesse sentido, o Bullet Bane proporciona um grande alívio de nos ajudar a enfrentarmos nossas próprias questões com clareza depois de ouvirmos como foi que eles enfrentaram as deles.

O BLLT se inicia em uma explosão raivosa com a potente “Pra Não Ter Que Enxergar Onde Errei”. Como no início de muitos processos, essa jornada em busca do autoconhecimento e de uma possível cura começa no reconhecimento dos próprios erros e das próprias falhas, que por vezes não encaramos com a atenção devida por conta da correria do cotidiano. Durante essa pausa forçada de anos, porém, chega a pesada realização: “O que eu fiz aqui agora vai voltar pra me assombrar”, canta Arthur. É o acerto de contas forçado – se não com os outros, pelo menos com o próprio eu.

A aceitação de verdades dolorosas e o arrependimento se tornam um peso grande demais para ser carregado sem variação de experiências por longos períodos de tempo, dando lugar então a outra sensação incômoda: o vazio. Em “Esse Vazio Ocupa Tanto Espaço”, a banda escreve um pedido de ajuda para encontrar “a saída do labirinto”, como é mencionado em um dos versos. O vazio do lado de dentro é refletido no vazio da vida lá fora, que se encontra em pausa sem previsão de retorno, o que reforça a angústia e a sensação de não conseguir enxergar um fim para esse marasmo eterno. “O que eu faço se todos os dias são o mesmo compasso?”, questiona Arthur em certo ponto, complementando mais tarde: “E cada minuto passa tão devagar / Eu me congelo no tempo, só espero acabar”.

A inércia do corpo, entretanto, não reflete a da mente, que continua produzindo pensamentos a milhão e busca cada vez mais um tipo de escape, um respiro, uma distração – coisas que não foram fáceis de encontrar nos tempos de isolamento, quando o mundo da porta pra fora se mostrava extremamente limitado, assim como o contato humano. “Acordei e tudo isso aqui eu acho que já vi”, é o desabafo de abertura da faixa de número 3 e também primeiro single do BLLT, “Sentir”. Em meio à desesperança, porém, a única resposta possível às vezes é se permitir sentir tudo o que for possível – um alívio maior do que passar longos períodos sem conseguir sentir nada. “Eu deixo sentir / Eu quero sentir”, canta Arthur Mutanen, alternando vocais suaves e melódicos e screamos rasgantes.

A ideia de repetição dos dias e das sensações é reforçada em “Cancela o Replay” e “Deja Vu” – ambas canções que se completam com letras cíclicas para reforçar essa ideia da mesmice e do eterno reprise do cotidiano. Sem muito mais o que fazer com o tempo “livre”, o eu-lírico rebate a falta de sono em “Organizando Meu Vazio”, mesmo admitindo não saber por onde começar porque já se tornou difícil sequer se reconhecer. “Tem tanta coisa que eu tento esconder / É tanta coisa que eu queria te falar / Mas na verdade nem eu mais sei me explicar / Na verdade nem eu mais sei me entender”, reflete.

O período de distanciamento prejudicou não só nossas habilidades sociais e de comunicação, mas também nos trouxe marcas externas e internas causadas tanto pelo horror do medo da morte, quanto pelo luto e a impotência. Apesar da escassez de novidades a serem vividas, o tempo não parou para nenhum de nós nos últimos anos – por mais que a vida pareça ter parado. Na excelente parceria com Lucas Silveira em “Lembro Quando Começou”, o vocalista da Fresno reflete sobre a continuidade da existência em meio a essa imensa pausa. “De repente os dias mostravam as marcas da vida / Reparei nos meus olhos cansados, olhando na imensidão”, canta. Não somos mais os mesmos e também é impossível encarar o mundo com o olhar de antes.

No final dessa longa jornada, o Bullet Bane mostra que os questionamentos estão longe de acabar, mas que, ao contrário da raiva e da frustração com os quais começaram, eles agora oferecem uma perspectiva de aceitação, trazendo a possibilidade de abrir o caminho e recomeçar com um novo ponto de vista. Na última faixa, “No Fim, Talvez”, o eu-lírico questiona suas próprias concepções idealizadas de amor e chega à dura, mas necessária conclusão de que o amor talvez tenha se manifestado muito pouco em suas vivências. “No fim, talvez eu só precisava de um corpo pra me esquentar / No fim, talvez nunca amei”, reflete.

Esses inúmeros “talvez” que se manifestaram durante o período de distanciamento social ganham um pouco mais de esperança agora que o isolamento total não é mais necessário. Muitas histórias sem final e perguntas sem resposta agora podem ser concluídas com as lições que aprendemos e as pessoas que descobrimos ser ou que escolhemos ser. É o momento de “pegar os cacos do chão”, como o Bullet Bane fala em uma das músicas. Com os cacos dos últimos dois anos, a banda construiu a grande redoma de vidro que é o BLLT e inaugurou um projeto inteiro, frágil e transparente, pronto para ser despedaçado e também para despedaçar, e um grande registro para guardarmos dos anos mais complexos de nossas vidas.

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